quarta-feira, 26 de agosto de 2009


Carlinhos Oliveira

“Mesmo com arma na mão, mesmo massacrando, torturando, humilhando o outro, o brasileiro encontra uma brecha pela qual manifesta sua alegria de viver. Assim, o homem cordial seria a besta feroz por definição, por ser o único animal que continua rindo enquanto esfola o seu semelhante. Ainda mais horrível e, ai de nós, maravilhoso: a vítima, sendo brasileira, também encontra jeito de soltar uma gargalhada enquanto a esfolam”.


*

Debruçado na obra do cara. Escrevendo meu primeiro roteiro pra cinema, baseado num dos seus romances. Carlinhos Oliveira é um dos maiores cronistas brasileiros. O cara que levava a máquina de escrever pra varanda do Antonio´s, nos anos 60 e 70, e dali procurava traduzir a paisagem humana - carioca e brasileira - de forma, quase sempre, genial. Hoje em dia está quase esquecido, engolido que foi pela vida desregrada que fazia questão de levar, e pelo mito de escritor e personagem maldito que acabou inventando pra si mesmo.


No Rio, conversei com o Jason Tércio, autor da excelente biografia do cara, "Órfão da Tempestade", e responsável pelo relançamento da sua obra. E o Jason me falou que, no final da vida, Carlinhos ainda brigou com meio mundo (entre outras coisas, porque andou meio que comendo a mulher de alguns "formadores de opinião"), sofrendo um verdadeiro boicote por parte dos colegas de imprensa.


Enfim: pra quem não conhece, um escritor que vale a pena descobrir.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Bip-Bip: Grêmio X Flamengo em Copacabana

A balzaca de camisa rubro-negra, de mangas cavadas – barriguinha de chope e alça do sutiã espiando pelo ombro – espeta o dedo na cara da outra e berra:

- Cê é vaxcaína que eu sei, sua filha da puta! Aí, ó: não consegue nem segurar o riso.... Mas cês não vão subir nem por um caralho, tá ouvindo? Nem por um caralho!

- Por um caralho cê sabe é que eu não subo em lugar nenhum mermo – responde a outra, confirmando o que a camisa social de mangas curtas, o cabelo escovinha e os quadris estrangulados pela cintura da calça já sugeriam.

Em Copacabana, rumo ao Bip-Bip. Um bar que desde a sua fundação, há mais de quarenta anos, é freqüentado pela nata do samba: o tipo de lugar que, mesmo sem conhecê-lo, já fazia parte da minha nostalgia. Como a própria cidade do Rio de Janeiro, diga-se de passagem.

Uma das poucas coisas que me atraem no futebol é o clima de desgraça iminente dos estádios em jogos de decisão. Quase cinco da tarde. Os termômetros não baixam dos trinta graus. Saída da praia: rumo ao subúrbio, a cachorrada batuca na lataria dos ônibus, entoando ameaçadores gritos de guerra, tipo baile funk. Nas filas, todos os olhos parados no futebol, sucessivamente transmitido por cada aparelho de televisão nos inúmeros botecos que se estendem pela Nossa Senhora de Copacabana. Escolho o bar onde percebo a maior concentração de flamenguistas, me abanco numa mesa de canto, perto da saída, e peço uma cerveja.

Grêmio 3, Flamengo 1. No Estádio Olímpico a torcida grita olé.

- Nem por um caralho, tá ouvindo? Cês vão é mofar na segundona!

A coroa berra, possuída. Num gesto tranquilo, a sapata ergue a manga e exibe a cruz-maltina tatuada. O Fluminense e o Vasco também estão se fudendo. Os cariocas – que normalmente já se comunicam aos gritos – guincham e se descabelam, como se estivessem parindo um filho do tamanho do Adriano com a cintura e os dentes do Ronaldinho.

... e o juiz apita mais um pênalti a favor do Grêmio Futebol Porto-Alegrense.

A balzaca rubro-negra vai pra frente da TV com os olhos cheios d´água. A Nossa Senhora de Copacabana inteira imersa num silêncio engasgado, o mesmo que acontece entre a freada e a batida.

Meus olhos cruzam com o olhar vascaíno da sapata, num aceno de cumplicidade: se por acaso estourar um sururu, já tenho uma companheira pra defender minha retaguarda.

A bola quase fura o centro da rede. Ajoelhado, o goleiro do Flamengo ostenta no rosto uma expresão dolorida. O Olímpico vem a baixo.

E eu me ergo da cadeira num grito de gol.

*
Chego vivo ao Bip-Bip. O bar do tamanho de uma garagem. Pelas paredes, fotos onde se vê Roberto Ribeiro e João Nogueira abraçados, Cartola, Nelson Cavaquinho, Beth Carvalho, o Aldir Blanc de camisa do Vasco ao lado do Chico Buarque tocando tamborim. Tudo naquela mesma mesa onde os músicos agora afinam os instrumentos – e onde, daqui a pouco, tocarão sambas novos e antigos com a displicência e a alegria de quem joga uma pelada na beira da praia com a parceria.
Como se levam a sério (e na maioria das vezes sem motivo) os músicos da província...

A calçada em frente ao bar já lotada. Lá dentro, sentados, apenas os músicos. Quem quiser cantar chega e canta. O próprio freguês se serve de cerveja no freezer.

Quando ouço alguém falar bem atrás de mim:

- Olha o gremixta aí, ó.

Um negão de um metro e noventa, com a camisa do Flamengo pendurada no ombro. O mesmo que retesou os bíceps, me olhou de canto e balançou afirmativamente a cabeça quando gritei gol. Ao lado dele, de mãos dadas, a sapata e a balzaca.

Com uma expressão divertida no rosto - tu recusarias? - ele me oferece um gole da sua cerveja.


quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Cioran



"Os entusiastas começam a tornar-se interesantes quando são confrontados ao fracasso: a desilusão os torna humanos. O bem sucedido em tudo é necessariamente superficial. O fracasso é uma versão moderna do nada. Ao longo da minha vida, estive fascinado pelo fracasso. Um mínimo de desiquilíbrio impõe-se. Ao ser perfeitamente sadio física e psiquicamante falta um saber essencial. Uma saúde perfeita é a-espiritual".

*

... e o Rio de Janeiro continua.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Mário Quintana


Eu acho que todos deveriam fazer versos. Ainda que saiam maus, não tem importância. É preferível, para a alma humana, fazer maus versos a não fazer nenhum. O exercício da arte poética representa, no caso, como que um esforço de auto-superação. É fato consabido que esse refinamento do estilo acaba trazendo necessariamente o refinamento da alma.

Sim, todos devemos fazer versos. Contanto que não venha mostrar-me.






Rourke/ Bukowski

Assistindo ao filme “O Lutador” me ocorreu que, mais de vinte anos depois, o Mickey Rourke finalmente conseguiu ficar a cara do Bukowski. (Alguns dirão que está mais pra Dedé Santana, mas não seremos tão maldosos com o protagonista de “Coração Satânico”).

Numa conversa de bar com meu amigo Marcelo Montenegro, depois de uns doze chopes, ficamos viajando na possibilidade dele, Rourke, representar de novo o escritor bebum – só que, desta vez, numa obra da maturidade, quando Bukowski já tinha encarnado de vez a figura do velho safado.

A escolha (não tão óbvia quanto aparenta) poderia ser o romance “Hollywood”, livro que narra as filmagens de “Barfly”, roteirizado pelo Bukowski e protagonizado pelo próprio Rourke.

No livro fica patente a emoção do escriba com o meticuloso trabalho do ator – reencontrar consigo mesmo no auge, antes da fama e da decadência física, quando tudo o que lhe importava era “brincar com o poema”, e pouco estava se fudendo pra todo o resto.

Também atravessa o romance uma sensação de tranqüilidade, uma placidez só conseguida por quem, na velhice, recostado nos próprios escombros, pode se gabar de ter sobrevivido a si mesmo, sem fazer conchavos ou concessões no que se refere a sua arte, ou a sua maneira particular de encarar os enguiços da vida.

O mesmo se pode dizer do trabalho de Rourke neste último filme. Ele parece saber o tempo todo exatamente sobre o que está falando. Sem afetação nem medo de se expor. Quite com a própria loucura, quase displicente. O que faz do seu “lutador” um destes personagens dos quais a gente chega a sentir saudades depois que o filme termina. Coisa parecida acontece quando se acaba de ler algum conto, romance ou poema do Bukowski: ao fechar o livro, a sensação (nem sempre agradável) de que acabamos de tomar um porre com Henry Chinaski pelos mais detonados muquifos de Los Angeles - e, quando a gente se despede, é sempre com um sincero “até o próximo”, antes de se levantar da mesa e sair trocando as pernas, ainda pensando no amigo.

Filmar “Hollywood” protagonizado por Rourke: estas idéias mirabolantes, quando postas em prática, costumam ou dar muito errado ou muito certo, sem possibilidade de meio termo. Seria fundamental tomar alguns cuidados, como, por exemplo, o Rourke/Bukowski velho jamais contracenar diretamente com ele mesmo, Rourke, quando jovem e etc – enfim: viagens de mesa de bar.

Mas já que cheguei até aqui, não custa dizer como imagino a última cena.

O velho escritor no cinema, com sua mulher, na pré-estréia de “Barfly”. De vez em quando, mama um trago da garrafa de vinho. A luz se apaga e se vê, em close, de perfil, seu rosto iluminado pela luz trêmula da projeção.

Corta para uma cena do filme (a tela vista na diagonal, deformada pela perspectiva). Na cena real de “Barfly”, se reconhece o jovem Chinaski.

Close de novo no ator/escritor. Que, bem devagar, esboça um sorriso.

Fade-out.

Fim.


segunda-feira, 3 de agosto de 2009


Jorge Luis Borges: João, I, 14


Não será menos enigmática esta página
que a dos Meus livros sagrados
nem daquelas outras que repetem
as bocas ignorantes,
por julgá-las de um homem, não espelhos
obscuros do Espírito.
Eu que sou o É, o Foi e o Será
torno a condescender com a liguagem,
que é tempo sucessivo e emblema.
Quem brinca com um menino brinca com algo
próximo e misterioso;
eu quis brincar com Meus filhos.
Estive entre eles com assombro e ternura.
Por obra de magia
nasci curiosamente de um ventre.
Vivi enfeitiçado, encarcerado num corpo
e na humildade de uma alma.
Conheci a memória,
essa moeda que nunca é a mesma.
Conheci a esperança e o temor,
esses dois rostos do incerto futuro.
Conheci a vigília, o sono, os sonhos,
a ignorância, a carne,
os torpes labirintos da razão,
a amizade dos homens,
a misteriosa devoção dos cães.
Fui amado, compreendido, louvado e pendi de uma cruz.
Bebi o cálice até as fezes.
Vi por Meus olhos o que nunca havia visto:
a noite e suas estrelas.
Conheci o polido, o arenoso, o díspar, o áspero,
o sabor do mel e da maçã,
a água na garganta da sede,
o peso de um metal na palma,
a voz humana, o rumor de uns passos sobre a relva,
o odor da chuva na Galiléia,
o alto grito dos pássaros.
Conheci também a amargura.
Encomendei esta escrita a um homem qualquer;
nunca será o que desejo dizer,
não deixará de ser seu reflexo.
De minha eternidade caem estes signos.
Que outro, não o que é agora seu amanuense, escreva o poema.
Amanhã serei um tigre entre os tigres
e predicarei Minha lei a sua selva,
ou uma grande árvore na Ásia.
Às vezes penso com nostalgia
no odor desta carpintaria.


Do livro "Elogio da Sombra" (Obras Completas, vol. II).