quarta-feira, 30 de setembro de 2009



Betty Blue


Da primeira vez que tentei ver este filme, fui barrado. Apesar de já ter, aos 14 anos, mais ou menos a altura que tenho, a cara de guri me denunciou. Então arranjei um boné do meu avô e uns óculos escuros do meu pai e tentei de novo.

E deu certo. Desta e das outras quatro ou cinco vezes que o assisti, naquela mesma semana.

Estava completamente apaixonado pela atriz e pela personagem (até hoje vejo as duas como uma coisa só, como se Betty fosse de carne e osso e Béatrice, um personagem que tenha fugido do sonho de alguém). O Moacyr Scliar foi quem deu a dica, numa coluna que ele assinava na Zero Hora, falando do grande filme que vinha depois da inesquecível trepada.



Quando vi no cartaz as fotos da Béatrice Dalle, me apaixonei no ato – a ponto de passar o vexame de ajambrar um disfarce pra entrar no cinema.

As coisas eram difíceis naquela época. Conseguir a trilha sonora, por exemplo, foi um parto. E a trilha sonora era fundamental pra evocar as cenas do filme - já que naquele tempo, nos momentos de maior solidão, só contávamos com nossas mãos e o sentimento do mundo.

Pra mim, um guri de 14 anos, o filme foi uma porrada, no bom e no mau sentido.

Foi por causa dele, por exemplo, que cometi alguns dos meus primeiros poemas. De madrugada, me sentava diante de um caderno, na mesa da cozinha, dilacerado por saudades imaginárias, como se fosse eu que tivesse vivido com Betty aquele romance enlouquecido: só faltava o gato deitado sobre a mesa.

O lado bom é que estes troços têm cura. E a cura se chama mulher: nem todas ao mesmo tempo tão loucas e belas quanto Betty, mas, se a gente souber escolher, cada uma com sua loucurinha e sua beleza particular, que sempre acabam tirando a gente do prumo e deixando a vida mais emocionante.

Nada mais chato do que a mulher normal. E quando digo nada, é nada mesmo: incluindo pernilongos, cachorros latindo de madrugada e os discursos do Suplicy.

Posso dizer que este e outros filmes - assim como alguns livros tão porradas quanto, que li na adolescência - moldaram meu gosto no que se refere às mulheres muito mais que as primas, as vizinhas ou as coleguinhas de escola da vida real. A gente não tem muito controle sobre estas coisas: quando vê, aconteceu.

Quase chorei de tristeza quando assisti, recentemente, "Betty Blue - versão do diretor". Os vinte minutos que foram acrescentados quase foderam com a história e, por tabela, com uma parte considerável da minha nostalgia. E o pior: esta é a única versão disponível em DVD.

Paciência.

Sobra a visão arrebatadora da Béatrice Dalle com seus peitos aparecendo pelas bordas do macacão sujo de tinta, o voluptuoso contraste entre sua cara de menina, sua barriguinha saliente e as curvas quase renascentistas das suas ancas, a sua boca carnuda que - tanto pelo volume, quanto pela sacanagem que inspira - parece vencer os limites da tela e antecipar, em quase trinta anos, o cinema digital em terceira dimensão: é com esta nitidez que, ainda hoje, de vez em quando sonho com ela. E não necessariamente quando estou dormindo.

(Ousei falar em ancas, esta palavra quase extinta. Quando muito porque, se considerarmos as novas estrelas de cinema, não há mais substância anatômica que lhe sirva de apoio. Também pela oportunidade rara de encaixar num texto o adjetivo “voluptuoso” – coisa que só combina com ancas ou coxas "de respeito", como diria meu avô).

Tive sorte: assisti o filme antes dele virar "cult". Nada como o impacto de uma coisa bela quando ela nos pega assim, desprevenidos.

Dia destes, li uma crítica dizendo que Betty Blue "envelheceu mal". Os críticos utilizam este lugar comum quando falam de alguma obra que, na opinião deles, não conseguiu superar as tranqueiras da época em que foi realizada.

Vou dar uma colher de chá pro crítico e concordar com ele.

Eu também "envelheci mal". Acho que todo mundo envelhece deste jeito. Não consegui - e, pra falar a verdade, nem tentei - superar alguns enguiços do passado: essa matéria renitente, da qual - à  revelia, sempre - todos somos compostos.

Abaixo, mais algumas fotos pra matar/atiçar as saudades. É só clicar que elas aumentam.








sexta-feira, 25 de setembro de 2009



Lennon, Garcia Lorca e Vinicius de Moraes

Ontem assisti ao documentário "Os EUA vs. Lennon", que conta a perseguição sofrida por John Lennon pelo governo Nixon, até seu estúpido assassinato, em 1980.

É de chorar.

Por essas tabelas afetivas que costumam acontecer quando algo nos emociona, acabei tirando da estante o "Romanceiro Gitano", de Federico Garcia Lorca, poeta catalão também assassinado, só que pelo governo facista de Franco, em 1936.

Seu corpo jamais foi encontrado. E isto é algo que sempre me assombrou - talvez até mais (e não me perguntem o motivo) do que o terror do seu fuzilamento.

Dois caras geniais, que aliavam coragem e um senso de humor muito pessoal, e que assim, meio de gaiatos, bateram de frente com a brutalidade da sua época e acabaram levando a pior.

Lorca tinha 38 anos quando o mataram. Lennon, 40. Os dois estavam no auge.

Talvez Glauber Rocha tivesse razão quando falava que poesia e política sejam demais pra um homem só.

Não sei.

Só sei que a morte precoce de um artista sempre acaba multiplicada ao infinito, se considerarmos o tanto de beleza que deixou de ser oferecida ao mundo por conta do talento e da vontade de uma só pessoa.

Abaixo, um dos poemas mais famosos de Garcia Lorca, seguido pela quase paródia - não menos genial e muito engraçada - de Vinicius de Moraes.


Federico Garcia Lorca: A Casada Infiel

Levei-a comigo ao rio
Pensando que era donzela
Porém já tinha marido.
Foi na noite de São Tiago
E quase por compromisso.
As lâmpadas se apagaram
E se acenderam os grilos.
Já nas últimas esquinas
Toquei seus peitos dormidos,
Que de pronto se me abriram
Como ramos de jacinto.
A goma de sua anágua
Vinha ranger-me no ouvido
Como seda que dez facas
Rasgassem em pedacinhos.
Sem luz de prata nas copas
As árvores têm crescido
E um horizonte de cães
Ladrava bem longe ao rio

Após franqueadas as brenhas,
Franqueados juncos e espinhos,
Por baixo de seus cabelos
Fiz um ninho sobre o limo.
Eu tirei minha gravata.
Ela tirou seu vestido.
Eu, cinturão e revolver.
Ela, seus quatro corpinhos.

Nem nardos nem caracóis
Têm cútis com tanto viço,
Nem os cristais sob a lua
Alumbram com igual brilho.
Suas coxas me escapavam
Como peixes surpreendidos,
Metade cheias de lume,
Metade cheias de frio.
Galopei naquela noite
Pelo melhor dos caminhos,
Montado em potra nácar
Sem rédeas e sem estribos.
As coisas que ela me disse,
Por ser homem não repito
Faz a luz do entendimento
Que eu seja assim comedido.
Suja de beijos e areia,
Eu levei-a então do rio.
Contra o vento se batiam
As baionetas dos lírios.

Portei-me como quem sou.
Como gitano legítimo.
Dei-lhe cesta de costura,
Grande, de cetim palhiço,
E não quis enamorar-me,
Pois ela, tendo marido,
Me disse que era donzela
Quando eu a levava ao rio.


Vinicius de Moraes: Rosário

E eu que era um menino puro
Não fui perder minha infância
No mangue daquela carne!
Dizia que era morena
Sabendo que era mulata
Dizia que era donzela
Nem isso não era ela
Era uma môça que dava.
Deixava... mesmo no mar
Onde se fazia em água
Onde de um peixe que era
Em mil se multiplicava
Onde suas mãos de alga
Sobre o meu corpo boiavam
Trazendo à tona águas-vivas
Onde antes não tinha nada.
Quanto meus olhos não viram
No céu da areia da praia
Duas estrelas escuras
Brilhando entre aquelas duas
Nebulosas desmanchadas
E não beberam meus beijos
Aqueles olhos noturnos
Luzinho de luz parada
Na imensa noite da ilha!
Era minha namorada
Primeiro nome de amada
Primeiro chamar de filha
Grande filha de uma vaca!
Como não me seduzia
Como não me alucinava
Como deixava, fingindo
Fingindo que não deixava!
Aquela noite entre todas
Que cica os cajus! travavam!
Como era quieto o sossego
Cheirando a jasmim-do-Cabo!
Lembro que nem se mexia
O luar esverdeado.
Lembro que longe, nos longes
Um gramofone tocava,
Lembro dos seus anos vinte
Junto aos meus quinze deitados
Sob a luz verde da lua.
Ergueu a saia de um gesto
Por sobre a perna dobrada
Mordendo a carne da mão
Me olhando sem dizer nada
Enquanto jazente eu via
Como uma anêmona n'água
A coisa que se movia
Ao vento que a farfalhava.
Toquei-lhe a dura pevide
Entre o pêlo que a guardava
Beijando-lhe a coxa fria
Com gosto de cana-brava.
Senti, à pressão do dedo
Desfazer-se desmanchada
Como um dedal de segredo
A pequenina castanha
Gulosa de ser tocada.
Era uma dança morena
Era uma dança mulata
Era o cheiro de amarugem
Era a lua cor de prata
Mas foi só aquela noite!
Passava dando risada
Carregando os peitos loucos
Quem sabe pra quem, quem sabe!
Mas como me perseguia
A negra visão escrava
Daquele feixe de águas
Que sabia ela guardava
No fundo das coxas frias!
Mas como me desbragava
Na areia mole e macia!
A areia me recebia
E eu baixinho me entregava
Com medo que Deus ouvisse
Os gemidos que não dava!
Os gemidos que não dava
Por amor do que ela dava
Aos outros de mais idade
Que a carregaram da ilha
Para as ruas da cidade.
Meu grande sonho da infância
Angústia da mocidade.



quinta-feira, 17 de setembro de 2009


Dois Poetas Malacos de Dois Mil Anos Atrás



Companheiros de porre, conterrâneos (os dois nasceram na Espanha romana), Marcial e Juvenal não tinham papas na língua, nem medo de dar nome aos bois.


Despudorados cronistas sociais da decadência, não poupavam , nos seus versos e epígrafes, nobres, cidadãos nem senadores – isto numa época em que dizer a palavra errada podia significar o exílio ou a morte.


Pra salvar o couro, puxavam o saco dos poderosos com uma das mãos - mas deixavam a outra livre, para seus fins inomináveis.


Escreveu Marcial, inspirado num alto burocrata do império, chamado Labieno: “Você depila peito, braços, pernas/ E apara em arco seus pentelhos. Dou fé,/ Labieno: é pra agradar a namorada/ - Mas, e o cu depilado, pra quem é?”


Quadrinha atualíssima. Principalmente se pensarmos nos pagodeiros que depilam as sobrancelhas, modernetes e sertanejos com seus cabelinhos desalinhados à base de gel, nos famigerados freqüentadores de rave e nos “metrossexuais” em geral, de todas as tribos e arrebites.


A tradução dos poemas é do Décio Pignatari (que fez questão de respeitar, na transliteração, o latim chulo e coloquial dos dois poetas).



Juvenal (60-140)


Liga pra alguma coisa a mulher que ama e bebe?

Troca as bolas, não distingue o de cima e o de baixo,

Quando deglute dúzias de ostras noite adentro,

Regadas a falerno perfumado, sorvido

Em conchas espumantes, enquanto o teto gira,

A mesa levita e tudo o mais se vê dobrado.

Pois, então, suspeite dos risinhos zombeteiros

Dessa Maura, se passa pelo velho oratório

Da deusa do Pudor, ao lado de Túlia, irmã

De leite. De noite, é ali que param suas liteiras

Para mijarem, inundando a estátua da deusa

Com esguichos de urina. À luz da lua, as duas

Atracam-se, fodem, voltam para casa. Você,

À luz da manhã, em visita a nobres amigos,

Patina na urina da esposa, pelo caminho.



Marcial (40-140): Epigramas


VII, 18


Nem mesmo uma mulher ousa falar

Do seu rosto, e seu corpo é sem defeito.

Como se explica, então, que nenhum homem

Queira foder você mais de uma vez?

Aí há coisa, e muito grave, Gala.

Quando me achego e brota o prazer mútuo

Dos púbis e dos órgãos se esfregando,

Sua boca cala e sua boceta fala!

Prouvesse aos deuses o contrário: estou

Farto da falação da sua xoxota.

Prefiro peidos: são saudáveis, Símaco

Afirma, e dão motivo a boas risadas.

Cona que estala a língua me chateia:

Se a flauta é deprimente, a cobra abaixa.

Feche a xota, pois, e abra a boca;

Mas se for mesmo muda, pelo menos ensine

Essa crica a falar alguma língua.


VII, 67


Filena, o sapatão, agarra até

Os garotos por trás e, mais tesuda

Que um macho fogoso, traça meninas

Pela dúzia, num só dia; arregaça a saia,

Joga pelota, passa pelo corpo

O polvilho amarelo dos atletas;

Com braço musculoso e ágil, lança

Longe o peso de chumbo, desafio

A Barbados, e sai, suja de lama,

Do campo, para as mãos do massagista

Oleoso, que a lanha a vergastadas;

Não ceia reclinada sem primeiro

Vomitar sete garrafas de vinho,

E mais sete – depois de deglutir

Dezesseis bolos de carne. No fim,

Acometida de tesão, não chupa

Pau (“Não é coisa de homem”): devora

As chanas das meninas. Mas que os deuses,

Filena, dêem jeito na sua cuca:

Não creia ser viril chupar boceta.



Louquinho bufão (XIV, 210)


Não finge o pasmo, não inventa que é chapado:

Quem pira além da piração não é pirado.




quarta-feira, 9 de setembro de 2009

João Cabral de Melo Neto:
O Cão sem Plumas (fragmentos)

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

(...)
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

(...)
Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.

(...)
No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.

(Como o rio era um cachorro,
o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada
no extremo do curso
- ou no mastro - do rio.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
que o mar está sempre
com seus dentes e seu sabão
roendo as praias.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia.

O mar e seu incenso,
o mar e seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
o mar e sua carne,
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado
à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria.)

O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.

terça-feira, 1 de setembro de 2009



"Pela decisão dos anjos e julgamento dos santos, excomungamos, execramos e maldizemos Baruch de Espinoza... Maldito seja de dia e maldito seja de noite; maldito seja quando se deita e maldito seja quando se levanta; maldito seja quando sai e maldito seja quando regressa..."

Texto de excomunhão de Espinoza, promulgado a 27 de julho de 1656. Não sei não, mas acho que até esta parte, a maldição rogada pelos inquisitores é que o herege sofra de uma crise de ciática (tá foda... tá muito foda).

Mas o texto continua:

"Ordenamos que ninguém mantenha com ele comunicação oral ou escrita, que ninguém lhe preste favor algum, que ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro jardas, que ninguém leia algo escrito ou transcrito por ele."

Tenho um amigo que está em situação semelhante, no que diz respeito a diversos órgãos da imprensa nacional, bem como no que se refere a editais, encontros literários e à coluna da Mônica Bégamo.

Para ler seus textos heréticos é só entrar, toda a semana, no www.congressoemfoco.com.br, e clicar sobre o nome maldito de Marcelo Mirisola. Garanto que vale a pena.

E outra coisa: aquela história de que "um homem com uma dor é bem mais elegante" é a puta que os pariu!