domingo, 29 de novembro de 2009


J.Bosco/ A.Blanc: Querido Diário


Confesso, querido diário,
Essa mulher me convulsiona
O ar de mártir no calvário
Em meio à bacanal romana


Garanto, querido diário,
Que atrás da leve hipocondria
Convive a hóstia de um sacrário
Com o fogo da ninfomania

Hoje acordei
Tomei café
Me masturbei
Comprei jornal
Fiz a fé no bicho
Pichei o governo
Me senti quadrado
Fui ao analista
Cantei "Babaloo"
Mais fora de esquadro
Do que esquerdista
No Grajaú


E o tempo todo, meu diário,
Pensava nela com amargura
O arquipélago das sardas
Nas costas nuas, que loucura


Constato, querido diário:
Muito pior do que perdê-la
É encontrá-la pelas ruas
Dizer: “Olá, prazer em vê-la...”



*


"De todos os bebuns que a gente encontra por aí, metade bebe porque não têm mulher... E a outra metade, porque têm."


Barão de Itararé



sábado, 28 de novembro de 2009


Poema Encontrado Dentro de uma Garrafa


Depois de muito tempo, entrei no velho bar.
Cada vez mais esta cidade me expulsa.
Fui embora cedo
expulso pelo parto reverso
- a bolsa pra lá de estourada -
dos fetos que se espremiam lá dentro.

Quando saí
a moça da portaria me disse: “Já vais embora?
Ainda nem ficaste chato!”
Podia ter respondido: “Nunca sou chato
apenas quando bebo
fico fora do teu alcance
e é por isto que bebo”.

A moça da portaria tem um sorriso bonito.
As moças são cada vez mais bonitas
a medida em que a gente envelhece.
O problema é que nesta cidade elas se repetem
em cada idade
como se fossem a mesma.

A cidade me expulsa
como uma onda
expulsa um destroço.

Este mar de província
raso
previsível
na calmaria ou na fúria.

(Por um motivo obscuro
todo homem procura o milagre.
E pelo mesmo mistério
um dia desiste de procurá-lo.)

Não há mais aventura possível
em frente a este mar.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009



Diálogos Libertinos com a Senhora H.

Todo mundo que ia visitá-la na Casa do Sol - o sítio em que morava sozinha, entre livros e cachorros, perto de Campinas - saía de lá com uma história. Com quase oitenta anos, já apitando na curva, não tinha mais saco pra medir palavras. O meu amigo Ricardo Lísias esteve lá e me contou que, ao sair, pediu pra que ela autografasse um livro:

- E o que escrevo? - ela perguntou.

- Escreve "para o Ricardo Lísias, com amor".

Virando-se pra ele, de olhos arregalados mas com um sorriso sacana, ela disse:

- Mas, meu filho, assim vão pensar que estamos fodendo!

Em outra ocasião, recebeu a visita de umas alunas do curso de letras da PUC. Tinha acabado de lançar "O Caderno Rosa de Lori Lamby", e o teor "pornográfico" do livro havia escandalizado muitos acadêmicos da época. Uma das alunas, visivelmente constrangida, perguntou:

- Dona Hilda, a senhora não tem medo que confundam sua obra com a vida real?

- Querida - respondeu, bebericando uma xícara de chá - no meu tempo eu era muito puta...

Já no fim da vida, um livro seu foi premiado com uma viagem a Paris. Recusou a viagem e pediu sua parte em dinheiro, com um argumento irrefutável: "Não posso beber, não posso passear, não posso trepar. O que é que eu vou fazer em Paris?"

Muito bonita na juventude - e muito "avançada" para o seu tempo - namorou caras como Dean Martin e Vinícius de Moraes. Quando numa entrevista perguntaram, em tom de fofoca, sobre seu caso com Vinícius, encerrou o assunto dizendo:

- Mas naquela época quem o Vinícius não comeu?

Hilda Hilst não era apenas isso. Era muito mais. Sem dúvida, uma das maiores escritoras que o Brasil já teve. Sempre recorro a ela quando preciso tirar o chão das coisas que escrevo. Mas como este blog tem uma pequena queda pela sacanagem, optei por apresentar apenas este lado. Na minha opinião, tão importante quanto todos os outros.


"Cartas de um Sedutor"

Cordélia, irmã, sai do teu claustro.
O campo envelhece vacas e mulheres.
Alimenta de novo teus buracos
Com mastruços gentis, nervosas picas
Ou se conas quiseres para tua língua
Consigo-te às dezenas: conas maduras
Conas juvenis, conas purpúreas
Para teus represados sentimentos vis.

Foste antanho putíssima, celebérrima.
Talvez senhora por alguns parcos segundos.
Mas agora me vejo furibundo pois suspeito
Que fisgaste o paterno caralho
Nos teus buracos fundos. Traidora. Megera.
Amada Musa ainda. Hei de te arrebentar as rebembelas.

Retornarás mui breve à vida impura
Pois se há no mundo picas e querelas
A respeito de tudo, ah, Palomita, vem...
Aqui te espera um valhacouto imundo.


*

"Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
Objeto de amor, atenta e bela.

Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)

Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel

Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra."

* * * * * *

E o Mirisola volta a exorcisar - segundo ele pela última vez - os pastores meganhas. Nunca é demais falar contra este povo. Para ler a crônica, clique aqui.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009


O Caminho e o Contrário



Por ocasião do lançamento de suas obras completas, escreveu Borges no prólogo do seu livro de estréia, “Fervor de Buenos Aires”, publicado quando ele tinha 22 anos: “Naquele tempo, procurava os entardeceres, os arrabaldes e a desdita; agora, as manhãs, o centro e a serenidade”.


O poema abaixo, do português José Régio, faz parte da minha adolescência. Quando ainda acreditava que a falta de medida e a loucura, por si sós, eram condições indissociáveis ao talento ou a qualquer tipo de pretensão literária ou artística. Em nome disto – intoxicado de música e literatura – cometi todas as cagadas necessárias pra poder olhar pra trás sem grandes nostalgias ou arrependimentos (um ou dois, na verdade... E sempre por excesso).


Hoje a transgressão virou regra. Sair pelas madrugadas em alta velocidade quebrando bares, enchendo a cara e cheirando pó virou um ritual que todo adolescente – pra ser considerado “normal” – é quase que obrigado a cumprir. A classe média descobriu os clubes de swing, o ex-Primeiro Ministro britânico toca guitarra e o presidente da França é casado com uma groupie. A única herança que restou quase intacta da chamada “mentalidade burguesa” – a qual, inspirados por nossos ídolos, combatíamos com unhas e dentes (apesar da maioria de nós ter nascido dentro dela) – é a tal da “mentalidade empresarial”.


Não é pouca coisa, reconheço. O problema é que o inimigo tomou quase todas as armas com as quais pelo menos três gerações aprenderam a lutar. E como se não bastasse, as revende a preços exorbitantes, e numa embalagem "bem transada" (ainda se fala isso?), aos novos iludidos, que ainda insistem em posar de transgressores, outsiders, “malditos” & afins.


Conheço bem o jogo. Eu e ele nascemos quase juntos, na mesma época. Também, no meu tempo, cheguei a comprar muito gato por lebre.


De modo que o poema, em essência, continua atual. O que está cada vez mais difícil de saber é pra que lado fica o tal caminho contrário. Pra mim já é tarde: não tenho mais saco de procurá-lo. Me restaria, portanto, fazer coro com Borges.


O diabo é que não consigo. De jeito nenhum.



José Régio: Cântico Negro


”Vem por aqui” - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

quarta-feira, 4 de novembro de 2009


ao meu pai.



deslizo da cama

desço à calçada

e só lá embaixo percebo

que esqueci os sapatos


as meias logo se encharcam

da chuva recente

e um sentimento sem nome

me obriga a continuar


visito mercados

botecos

lojas de conveniência

e logo saio

sem pedir nada


sinto a sujeira

grossa

de toda a cidade

endurecendo nas solas

as pontinhas geladas

do asfalto

ao atravessar cada rua

até que os cascalhos e a grama

de um parque da infância

me mostram que é outra cidade

que o tempo é outro

anterior a mim mesmo

e começo chorar

pela certeza de que vou encontrá-lo

a certeza absoluta

de que vou encontrá-lo

como no tempo

em que estava vivo.