terça-feira, 31 de maio de 2011

Mais um Causo da Terrinha...


O Começo da Briga
(Recolhido por Apparicio Silva Rillo, em "Rapa de Tacho" - 2ª Edição) 

Bier

- O senhor foi intimidado a depor sobre a violenta briga acontecida ontem no seu armazém, no Iguariaçá. Três mortos, oito feridos, um horror...

- No meu bolicho, seu delegado. Quem sou eu pra ter armazém? Armazém é do Turco Salim, que foi mascate. Por sinal que...

- Não desvie do assunto. Como e por que começou a briga?

- Bueno, pois historiemo a coisa. Domingo, como o senhor sabe, o meu bolichote fica de gente que nem corvo em carniça de vaca atolada. O doutor entende: peonada no más, loucos por um trago, por uma charla sobre china. A minha canha é da pura, não batizo com água de poço como o Turco Salim. Que por sinal... 

- Continue, continue. Deixe o turco em paz.

- Pois então bamo reto que nem goela de joão-grande. Tavam uns quinze home tomando umas que outras, uns mascando salame pra enganar o bucho, quando chegou o Faca Feia. O senhor sabe, o índio é mais metido que dedo em nariz de piá. Deu um planchaço de adaga no balcão e perguntou se havia home no bolicho. Todo mundo coçou as bola. Home tem bola, o senhor sabe. O Lautério - que não é flor de cheirar com pouca venta - disse que era com ele mesmo, deu de mão numa tranca e rachou a cabeça do Faca Feia. Um contraparente do Faca não gostou do brinquedo e sentou a argola do mango no Lautério, pegou no olho - lá nele - e o Lautério saiu ganindo como cusco que levou água fervendo pelo lombo. Um amigo do Lautério se botou no contraparente do Faca - que já tava batendo perninha - e enfiou um palmo e meio de ferro branco no suvaco do cujo, que o chamam de Pé de Sarna. O irmão do Sarna, acho que chateado com aquilo, pegou um peso de cinco quilos da balança e achatou a cabeça do homem que faqueou o Sarna. Os óio saltaram, seu doutor. E eu só olhando, achando tudo aquilo um tempo perdido. Um primo do homem do ferro branco rebuscou um machado no galpão e golpeou o irmão do Sarna. Errou a cabeça, e só conseguiu atorar um braço do vivente. Aí eu fui ficando nervoso, puxei meu berro pro mole da barriga, pronto pra um quero. Meu bolicho é casa de respeito, seu delegado, e a brincadeira já tava ficando pesada. Mas bueno, foi entonces que o Miguelão se alevantou do banco, palmeou uma carneadeira, chegou por trás do homem do machado, pé que te pé, grudou ele pelas melena e degolou o vivente num talho que foi a coisa mais linda. O sangue jorrou longe como mijada de colhudo. Aí eu e mais uns outros - tudo home de respeito - se arrevoltemo com aquilo. Brinquedo tem hora, o senhor não acha?

- Acho, sim. Mas e aí?

- Pois é, como lhe disse, nós se arrevoltemo. Saqueamo os talher. E foi aí que começou a briga...


segunda-feira, 30 de maio de 2011


Assim termina o livro "Cartas de Aniversáro", de Ted Hughes:

Vermelho

O vermelho era sua cor.
Se não o vermelho, o branco. Mas era no vermelho
Que você se envolvia.
Vermelho-sangue. Seria mesmo sangue?
Ou ocre, para aquecer os mortos?
Hematita para imortalizar
Os ossos da família, legado precioso.


Quando por fim se fez a sua vontade
Ficou vermelho o nosso quarto. Um tribunal.
Escrínio fechado para jóias. Tapete de sangue
Com padrão de formas escuras, coaguladas.
As cortinas - veludo vermelho-rubi.
Torrentes de sangue puro a cair do teto.
As almofadas também. O mesmo tom
De carmesim em carne viva no poial da janela.
Uma célula a pulsar. Altar asteca - templo.


Só as estantes escapavam para o branco.


E pela janela se avistavam 
Papoulas finas, frágeis, franzinas
Como pele sobre sangue,
Sálvias, das quais seu pai tirou seu nome,
Como sangue jorrando de um talho,
E rosas, últimos coágulos do coração,
Catastróficas, arteriais, condenadas.


A sua saia rodada de veludo, um lanho de sangue,
Tom generoso de borgonha.
Os seus lábios de um carmesim fundo, fendido.
Você exultava com o vermelho.
Para mim era carne viva - como as bordas 
Duras feito gaze de uma ferida a cicatrizar.
Nele eu sentia a veia aberta, o brilho encrostado.


Você pintava tudo de branco, e depois
Salpicava de rosas, para derrotá-lo,
Se debruçava sobre o branco, gotejando rosas,
Chorando rosas, e mais rosas,
E por vezes, entre elas, um pequeno azulão.


O azul era melhor para você. Azul de asas.
Sedas azuis de San Francisco, cor de martim-pescador,
Envolviam sua gravidez
Em carícias de crisol.
Azul era seu espírito bom - não um espectro sinistro,
E sim um guardião, elétrico, solícito.


No abismo de vermelho
Você se ocultava do branco de osso, de hospital.


Mas era azul a jóia que você perdeu.


*


Por todo o livro, sua primeira mulher, Sylvia, desliza como um vulto translúcido e incandescente, que atravessa uma sala de cabeça erguida, rumo a um fim que todo mundo já sabe. Quando a segunda mulher de Hughes também se matou, e de forma idêntica a esse espectro que decerto a assombrava, pra muitos foi uma confirmação: Ted era mesmo um monstro. Quem, entretanto, lê essas "cartas" à espera uma confissão - depois de mais de quarenta anos de estóico silêncio - cai do cavalo. O que se vê é um homem difícil e consciente do problema que representava a quem se aproximasse dele, casado com uma mulher também, ao mesmo tempo, difícil e delicada, que arrastava consigo um ossuário pesado (principalmente os ossos do pai) e  todos os empedernidos valores que sustentam a jovem e contundente mitologia da sua terra (os EUA), os quais Hughes - um camponês do interior da Inglaterra, que se criara em meio aos bombardeios da segunda guerra mundial - ora não entendia, ora simplesmente desprezava. No fim das contas se tem a impressão de que, nesse embate, os dois acabaram trincados e partidos, mas apenas um - pro mal dos seus pecados - ficou de pé. 


Agora que ambos estão mortos, sobra o que deixaram escrito. E, na minha opinião, é o que realmente importa. 

Na sequência, um dos últimos poemas de Sylvia Plath, que - acho eu - encontra ressonâncias com o poema que abre esta postagem. E não só por uma viagem da minha cabeça: uma das marcas do livro é um diálogo constante entre Hughes e os poemas de Plath.


*

Sylvia Plath: Edge 


A mulher ficou perfeita.
Seu corpo


Morto sorri o sorriso da realização,
A ilusão de uma necessidade grega


Corre nos papiros de sua toga,
Seus pés


Descalços parecem dizer:
Fomos tão longe, acabou.


Cada criança morta encolhida, uma serpente branca,
Uma em cada pequena


Bilha de leite, agora vazias.
Ela as recolheu


Novamente a seu corpo como pétalas
De uma rosa fechada quando o jardim


Endurece e os cheiros sangram
Das gargantas profundas e doces das flores noturnas.


A lua não tem por que ficar triste,
Vendo tudo com seu capuz de osso.


Ela esta acostumada a esse tipo de coisa.
Suas rachaduras negras crepitam e arrastam.




domingo, 29 de maio de 2011

Um Pouco de Nostalgia 
da Terrinha

"Se a bala vier por baixo, nós pulemo! Se a bala vier por cima, nós se agachemo! E se a bala vier pelo meio... daí nós vemo!" 


(Honório Lemes, o "Leão do Caverá", comandande de tropas voluntárias em três revoluções Rio-Grandenses - 1893, 1923 e 1927 - discursando para os soldados antes da peleia).


Sabe Moço
(Francisco Alves)

Sabe, moço
Que no meio do alvoroço
Tive um lenço no pescoço
Que foi bandeira pra mim
Que andei mil peleias
Em lutas brutas e feias
Desde o começo até o fim
Sabe, moço
Depois das revoluções
Vi esbanjarem brasões
Pra caudilhos coronéis
Vi cintilarem anéis
Assinatura em papéis
Honrarias para heróis
É duro, moço
Olhar agora pra história
E ver páginas de glórias
E retratos de imortais
Sabe, moço
Fui guerreiro como tantos
Que andaram nos quatro cantos
Sempre seguindo um clarim
E o que restou?
Ah, sim
No peito em vez de medalhas
Cicatrizes de batalhas
Foi o que sobrou pra mim

*

"Eu lhe prometo que trarei boas notícias quando eu voltar
Se eu não voltar, as boas notícias estarão lá
Se pelo acaso as boas notícias 
Não encontrar você
Daí fudeu...
Daí fudeu..."

(Wander Wildner, precursor do punk rock Rio-Grandense)


Amigo Punk

Genial este clip. Em 83, eu morava em Santa Maria da Boca do Monte, e tinha recém descoberto o que depois ficou conhecido como Heavy Metal. Nos reuníamos num prédio que ficava no centro, ao lado do Cine Glória, e ouvíamos as raridades que o Chambinho - o rockeiro-mór da cidade - tinha trazido dos EUA. É. O apelido dele era Chambinho. E passava semanas com a mesma camiseta do "Born Again", o clássico disco do Black Sabbath vocalizado pelo Ian Gillan (ex Deep Purple), onde um bebê-demônio parecia que tinha acabado de emergir de uma das cloacas mais profundas e apertadas do inferno. Não posso dizer que foram bons tempos. É que não havia absolutamente NADA melhor pra gente fazer. Com mais um ou dois edifícios em volta, a desolação era exatamente essa vivenciada pelo guri do vídeo-clip, dentro e fora da gente. Depois, já morando em Porto Alegre, acompanhei (do meu canto, como sempre) o surgimento do novo rock gaúcho. Mas daí já é outra história. O que posso dizer é que a experiência do pampa é algo que sempre deixa suas marcas em quem a viveu. E, seja nos floreios de uma cordeona ou em riffs de guitarra - é a milonga a música que melhor traduz a monotonia dos horizontes devassados e a revolta engasgada, antiga, atravessada no peito, que sustentam esse sentimento. Um troço difícil de explicar. Como sempre acontece quando uma música se mistura com um tipo específico de emoção, evocando-a numa só porrada, mas sem a pretensão de traduzi-la. Acho que este é um dos raros casos em que a palavra "magia" ainda pode ser utilizada sem que se caia no ridículo.


sábado, 28 de maio de 2011

O Pé Que Não É


Já disse aqui que a pior forma de burrice é a falta de humor. Não sou do tipo otimista. Nem acredito na força do pensamento positivo, no envio de bons fluidos e coisas do gênero. O humor, pra mim, é uma forma de resistência. Na falta de Deus, do Paulo Coelho ou da Zíbia Gasparetto é o único recurso que tenho pra amenizar o impacto das porradas que a vida parece ter sempre engatilhadas em meia dúzia dos seus punhos (tem vários punhos a vida... Os hindus estão certos quando representam a deusa da desgraça com dez braços.)
Meu avô era, em todos os sentidos, um grande sujeito. Tinha uns cento e vinte quilos de gordura compacta. Quando morreu foi uma dor filha da puta pra todos que o conheceram. O que não impediu meu pai de escolher a gaveta mais alta do cemitério São Miguel e Almas pra colocar o caixão. Tiveram que ser convocados uns oito amigos e coveiros. Depois ficamos rindo, imaginando como o velho iria se divertir vendo os caras ali, "forcejando mais que entupido", como ele mesmo dizia.
Não perdia a oportunidade pra uma boa gozação, o véio Nilo (sim, essa é a origem do meu nome). Trovador, açougueiro, ex-contrabandista de gado – passava as tardes num armazém perto da sua casa, cujos frequentadores pareciam ter saído de um filme do Mario Monicelli.
Um deles se chamava Zé e tinha uma perna de pau. Ninguém tocava no assunto. Quando bebia, o Zé ficava valente: um tipo sempre mal humorado, que ameaçava dar tiro e sair no braço por qualquer motivo. Era também famoso por seu pão-durismo.
Na primeira discussão que teve com meu avô, o velho encerrou a conversa dizendo pra ele tomar tento, senão iria arranjar um casal de cupins e pôr na perna dele. O Zé sumiu por uns tempos. E, quando voltou, os dois se tornaram grandes amigos – apesar dele ter ganhado o apelido definitivo de "Zé Perneta".
Tornou-se mesmo frequente o ameaçarem com cupins e pica-paus. Não chegava a rir. Mas também já não ia embora furioso, como costumava acontecer.
Certa ocasião, o Sarará – um crioulo mirrado e gozador – achou de cutucá-lo, numa discussão sobre futebol (o Sarará era o único colorado da gangue):
– Olha, Zé, é melhor ficar na tua: senão eu dou uma rasteira neste teu pé que não é...
Nem tinha terminado de falar e o Zé já estava com a própria perna na mão, com sapato e tudo, ameaçando quebrar a cabeça do Sarará.
Quando o colorado fugiu às gargalhadas, o Zé, colocando a perna de volta, também começou a rir – e, pra espanto geral, pagou uma rodada de canha pra todo mundo.



Sempre que ouço falar em bulling e pataquadas do tipo, me lembro dessa história.
Pra quem não teve a sorte de, na infância, ter presenciado ou escutado histórias do tipo, e insiste em cultivar com gravidade a dor irremediável do seu pé que não é, recomendo assistir urgentemente os filmes "Amici Miei" I e II, do já citado Monicelli (no Brasil, "Meus Caros Amigos" e "O Quinteto Irreverente") – ou escutar aquele famoso samba do Cartola (... Pois chorando/ Senti a mocidade perdida).
Concordo parcialmente com o Shakespeare quando diz que "só ri-se da cicatriz quem nunca foi ferido". É vero. Em feridas mal cicatrizadas a gente tem que mexer com cuidado. Alguns fatos nos obrigam mesmo a ficar encolhidos num canto, encher a cara e chorar um pouco pra ser melhor digeridos. Mas uma coisa é certa: quanto mais o sujeito se leva a sério, pior o seu processo de cicatrização.
Fora da capela, com seu copo de canha na mão, o Zé Perneta era o amigo que mais chorava no velório do véio Nilo.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Sobre Poder


Ela abriu em cada pulso uma fresta. Pura curiosidade, disse depois: queria espiar o outro lado. 

O mundo pra ela era pouco. Não lhe importava se, junto com o olhar, fosse tragado também todo o resto. 

"Sabe por que as cadelas lambem a xota?" - perguntava, a quem não engolisse a explicação.

A piada é velha. Todo mundo sabe a resposta. 


Mesmo assim, sem rir, completava: 

"Por que elas podem."


quarta-feira, 25 de maio de 2011


Monk's Blues

(...)
A mesa ao fundo. Luz néon. O litrinho de cerveja uruguaia (aqui me permito uma licença poética). Um lugar pequeno, de teto baixo. Nos telões, em preto-e-branco, clássicos do jazz: caras negras, sorridentes, curtidas pela cachaça. Tiozinhos de terno, com óculos de tartaruga. A era pré-performance: quando os guitarristas não dobravam o corpo, nem faziam careta pra tocar. Todos pareciam estar pouco se lixando pra câmeras e holofotes. Uma época em que o recreio era escasso – e as mãos dos músicos, educadas pelo cabo da enxada.
Durante um solo de sax, Thelonious Monk se levanta do piano e começa a dançar. Todo torto, um braço dobrado frente ao peito e o outro pendurado, como se estivesse com o amortecedor vencido. Depois volta ao banquinho e, como um possesso, agride o teclado, fazendo lembrar a todos que o piano, com toda a sua chinfra, não passa de um primo mais afrescalhado do tambor.
A cerveja desce rebolando pela garganta. E começa a se arretar com o conhaque na ampla cama redonda do meu bucho. A melodia estanca e a câmera foca o baterista. Dois braços. Um bumbo. Dois pratos, dois tambores – e duas mil e quinhentas baquetas.
Numa manhã inverno, há uns trinta anos atrás, eu, meu irmão, meu avô e meu pai, quebrando a geada com taco das botas: o campo ancestral e monótono. A entrevada ondulação das coxilhas. Lembro que estava muito orgulhoso com minhas botas novas, forradas de pele de ovelha. Um pouco adiante, um grupo de peões, com um boi pelo cabresto.
Ao nos aproximarmos, o capataz, numa reverência, ofereceu ao meu avô uma faca. O velho agradeceu com um breve aceno de cabeça. E, numa extensão do cumprimento – fez com que a lâmina entrasse e saísse com doçura do peito do animal. Virei o rosto pro irmão, dois anos mais novo. E vi, desapontado, que ele olhava firme o bicho que, em câmera lenta, se ajoelhava sobre o próprio sangue, os olhos revirados, como naquelas gravuras de Joana D´arc, momentos antes do martírio. Com dois gestos vigorosos, o velho limpou a lâmina no pasto e a devolveu ao capataz. Munidos de machadinhas e facas afiadas, os peões atacaram o boi e o carnearam ali mesmo, sobre o couro.
Horas depois estava saboreando – assado pelo avô, antigo açougueiro e contrabandista de gado – o melhor churrasco que já comi na vida.
O baterista do Thelonious Monk me fez recordar esta cena. O misto de violência e doçura com que tratava os tambores. Se filmado do peito pra cima, parecia não ser ele o responsável por toda aquela quizomba.
(...)

Escrevi isto em julho de 2009. É parte da segunda postagem deste blogue, e se chama "O Jazz, o Guarda-chuva e o Martírio do Boi". Hoje achei no YouTube um dos vídeos que a inspiraram. 
Taí.
Thelonious Monks - Blue Monk

segunda-feira, 23 de maio de 2011


Muito bom. Com três anos de atraso, vi este final de semana. Um filme de gente grande. Genial a cena no estádio do Racing (e também a anterior, no bar, quando é revelada a "paixão" do bandido). 

Sim, tem um bandido. E tem também um mocinho e uma mocinha. E, como se não bastasse, o mocinho tem um amigo engraçado, que mistura de forma muito bem ajambrada o trágico e o patético. E  tem a cena da estação, no melhor estilo "Doutor Jivago". Trata-se de um "thriller policial", com todos os elementos que caracterizam o gênero. Mas também não é nada disso. Porque, por trás de tudo, tem a mão do escritor. Todos os personagens parecem flutuar a um centímetro do chão - mas, ao mesmo tempo, conseguem ser reais, de carne e osso - "anjos com asas de galinha", como já defini, em outra ocasião, a palavra "gente". É, em suma, aquilo que entendo por Filmão: uma obra cinematográfica que acontece a partir de uma série de clichês - mas só pra desmenti-los e/ou ironiza-los a cada cena (e, principalmente, a cada diálogo). 

Não querendo comparar um resultado com o outro, mas, em essência, foi o que o Sérgio Leone fez com os filmes de bang-bang, em "Era uma vez no Oeste" e no "O Bom, o Mau e o Feio". Lição muito bem aprendida pelo Clint Eastwood, que veio aplicá-la de forma didática e contundente em "Os Imperdoáveis". É também o que o Spilberg fez com os filmes de guerra, em "O Resgate do Soldado Ryan". Alguns filmes do Bruce Willis (é, ele mesmo) também são  exemplos desse princípio, só que aplicado aos "filmes de ação": um mocinho que vence no final, mas se fode o tempo inteiro, e - entre a obrigatória pancadaria e o próximo tiroteio - tem sempre algo interessante a dizer. 

Também não vou fugir do clichê ao comparar "O Segredo de seus Olhos" e sua indefectível "alma portenha" com um tango: gênero musical que - apesar do barulho e da dose de testosterona que exala - narra, no fundo, uma sofrida, delicada e pungente história de amor. 

quinta-feira, 19 de maio de 2011



Manuel Bandeira: "Teresa"


A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna


Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)


Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.


*  *  *

Os dois últimos versos deste poema são de matar. Do livro do Gênesis, capítulo I, versículos 1-3: "No princípio Deus criou o céu e a terra. A terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas. Então Deus disse: Faça-se a luz. E a luz foi feita."

Esse momento: ao perceber que havia se apaixonado por uma mulher que, a princípio, não tinha achado bonita, foi como se o mundo voltasse à estaca zero, pra logo depois ser recriado.

Pra quem não costuma enxergar apenas com os olhos, de vez em quando acontece. E não só no que diz respeito às mulheres.


P.S.: Acho uma merda isso de ficar explicando poema. Coisa de professor de cursinho. Mas desta vez não me segurei. Talvez porque ache isso tão bonito, que queria "participar" da coisa de alguma forma. É o que, no fundo, todo crítico faz. A diferença é que eu assumo. O que não chega a ser uma rima. Muito menos, uma solução.



quarta-feira, 18 de maio de 2011


Método de Tratamento Fausto Wolff 
para o Transtorno Bipolar


"Dou um porre no depressivo que depois, do maníaco, eu seguro as pontas."





terça-feira, 17 de maio de 2011


Três Trilhas Tristes

(já sentiu nostalgia de um filme como fosse coisa vivida?)



Summer of 42 - Michel Legrand


Betty Blue - Gabriel Yared


Cinema Paradiso - Ennio Morricone



Na infância e adolescência, a gente vive em função do que sonha. Na velhice, talvez pela  intuição do caminho percorrido ser mais longo, vivemos em função da memória. Adultos, a falta de opção nos obriga ao pragmatismo, e vivemos em função do que vivemos. Amanhã completo 39 anos. Um curto-circuito entre o sonhado, o vivido e o lembrado. Um tempo de reflexão. Quando a urgência de aproveitar cada movimento desta trilha sonora se alterna com uma valorização cada vez maior do silêncio. 



Nelson por Lan

O ódio começou quando, pela primeira vez, um homem viu outro homem. E assim tem sido, através de todas as manhãs e de todas as noites: - o "outro" continua sendo o inimigo de cada um de nós e de todos nós. Daí porque o grande acontecimento é, sempre, o amigo. Ele é a desesperada utopia que todos nós perseguimos até a última golfada de vida. 

(...)

A perfeita solidão há de ter pelo menos a presença numerosa de um amigo real.
                                                                                                Nelson Rodrigues


segunda-feira, 16 de maio de 2011



Corpos celestes,  naves espaciais ou - a julgar pela indiscreta ereção dos aborígenes - uma representação celestial daquele lugar aconchegante e misterioso, de onde todos saímos e pra onde muitos passam a vida inteira tentando voltar? 


O que esses desenhos representam, confesso que não sei. Vi recentemente no Discovery Channel uns ufólogos vociferando em torno delas, acometidos de espasmos e orgasmos múltiplos. Podem ser pura ficção: apenas um relato sobrevivente dos primeiros autores de ficção científica da (pré) história. Se daqui a uns milhares de anos tudo o que sobrar da nossa civilização forem uns fragmentos do H.G. Wells, será que alguns malucos do futuro não acreditarão que seus ancestrais realizavam viagens no tempo? Mesmo porque, forçando um pouco a barra, nossos antepassados das cavernas já pareciam cultivar diversos gêneros literários.

Histórias de aventura, compostas por lanças, bisões e mamutes. Representações do corpo da mulher, que podem ter sido tanto poemas e orações em homenagem à deusa da fertilidade, quanto as primeiras obras pornográficas de que se tem notícia.

Pode também ser um caso ancestral de bullying: vai que tivesse um troglodita de olhos saltados e cabeça grande demais, e os colegas fizessem essas pichações pra tirar um sarro da cara dele...

Seja qual for seu significado, o que eu acho bonito nessas pinturas é o impulso que levou esses colegas anônimos a não se contentarem apenas em vivenciar as coisas, mas também registrá-las. Seja pra dividir com os outros, seja por uma motivação íntima e solitária - o fato é que as pinturas estão aí, como qualquer obra de arte que se preze, ganhando novos significados, embaralhando explicações e fundindo a cabeça dos indefectíveis e eternos "especialistas".

Segundo algumas teorias antropológicas (o mundo está cheio delas...), tanto as pinturas rupestres, quanto a idéia da vida após a morte encontram suas origens no sonho. Até faz sentido. Se partirmos do pressuposto de que a zona cortical - a camada mais fina e superficial do nosso cérebro, responsável pelo pensamento abstrato, que serve de base ao raciocínio - foi a última a se delinear em toda a sua complexidade, podemos supor que os primeiros hominídeos se embananassem um pouco ao buscar explicações sobre aquilo que vivenciavam, não conseguindo, entre outras coisas, diferenciar o vivido e o sonhado. 

Um companheiro morria. Na noite seguinte, alguém falava com ele num sonho. Logo, o sujeito não podia estar morto de verdade - ou, no mínimo, estava vivo em algum outro lugar. Por isto o antigo costume de enterrar o defunto com armas e provisões: se ele por acaso acordasse, teria como matar a fome e sair pra caçar.

Ainda segundo essa teoria, também as pinturas rupestres não seriam apenas representações de algo que aconteceu, mas poderiam ser tanto maneiras de concretizar algo que foi sonhado, quanto parte de  um ritual que ocorria antes de caçadas ou batalhas, como forma de favorecer a realização de um fato da maneira como eles gostariam que esse fato ocorresse.

Palavras, palavras, palavras... Mallarmé já afirmou que tanto faz se fato ou ficção: "tudo existe pra acabar num livro". Ou, em tempos remotos, nas paredes de uma caverna. Ou num blogue perdido no meio desta suruba virtual de palavras e imagens, que no fundo só serve pra satisfazer o impulso quase masturbatório daquele que escreve. 



Hoje o inverno chegou pra valer. Uma chuva rala, fininha, como se o frio não se contentasse com a pele e quisesse gelar também o que está por baixo dela. Principalmente a memória. Que visita outros dias de inverno, todos eles encolhidos nesse pequeno sanatório de coisas que não estão aqui, mas ao mesmo tempo estão. Com estranha clareza, dá pra escutar a risada dos internos, seu  bater de dentes, as palavras sem nexo, caminhar entre os diversos tamanhos de seus corpos encolhidos e de cabeças trocadas. O domingo inteiro debaixo das cobertas. Um gordinho simpático na tv fala do livro que escreveu sobre o Fernado Pessoa. Uma biografia. Vejo um desses rostos antigos se erguer entre os outros e declamar, de modo solene: "O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, Que chega a fingir que é dor, A dor que deveras sente"  - e logo um moleque magrinho, também vagamente parecido comigo, expia sobre seu ombro e comenta, cheio de sacanagem na cara: "Genial!... Um troço que vale tanto pro poeta quanto pra atriz pornô!" Vou até a estante, pego um livro e abro numa página qualquer. E então o poema é tudo o que há, pontuado pelo barulho da chuva, que  subitamente enfurece e castiga a vidraça.


                                      
"Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

'Constituição íntima das coisas'...
'Sentido íntimo do Universo'...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo dos coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me: Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê.
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora."



(Alberto Caeiro: "O Guardador da Rebanhos", Canto V)