quarta-feira, 29 de junho de 2011


Estava procurando no Google uma frase do Oscar Wilde, que sabia mais ou menos de cabeça e que acho definitiva (como grande parte dos aforismos do Wilde), quando tropecei numa crônica famosa do Luís Fernando Veríssimo. E garanto que é dele mesmo: ultimamente, qualquer imbecil que escreva um texto engraçadinho e não tem colhão pra assinar, atribui ao Veríssimo a autoria da bobagem - o que, pra um escritor, deve ser um inferno: muito melhor ser completamente esquecido do que ser lembrado desta forma. 

Pois bem: não posso negar que reli a crônica com um sentimento de grande nostalgia, como quem reencontra um velho amigo dos tempos de escola e percebe, maravilhado, que ele continua o mesmo: coisa que não costuma acontecer com muita frequência no que se refere a pessoas reais. Mas, em se tratando de literatura, não sei se isso pode ser considerado algo positivo. 


No final da infância e início da adolescência,  lia tudo o que me caia nas mãos. E foram leituras - pra dizer o mínimo - bem diversificadas: parentes e amigos da família, sabendo dessa mania esquisita, sempre que limpavam suas estantes me chamavam pra escolher o que eu quisesse. Assim acabei lendo desde os best-sellers americanos - Irwing Wallance, Sidney Sheldon, Morris West etc - e as três (!!!) primeiras "obras" do Paulo Coelho ("O Diário de um Mago", "O Alquimista" e "Brida"), até livros como o "Feliz Ano Velho", do Marcelo Paiva, "Ereções, Ejaculações, Exibicionismos I e II", do Bukowski, "O Muro", coletânea de contos do Sartre, "Trópico de Câncer", do Henry Miller, "A Filosofia na Alcova ou Escola de Libertinagem", do Sade, "Cem Anos de Solidão", do Garcia Marquez, passando por Monteiro Lobato, Agatha Christie, Connan Doyle, Rubem Fonseca, os livros da Coleção Vagalume, da coleção de bolso da L&PM e vários daqueles clássicos de capa dura editados pela Abril Cultural - tudo antes dos 16 ou 17 anos(época, como não canso de repetir, em que até o Caetano era gênio.)

Alguns autores eram logo descartados. Outros, perseguidos por livrarias e sebos. O Veríssimo foi um dos que me acompanharam durante todo esse período.

Quando mais tarde reli Thomas Mann ("Morte em Veneza") e Dostoiévski ("Crime e Castigo"), por exemplo, era como se os estivesse lendo pela primeira vez. Não sei se a qualidade de um autor pode ou não ser medida pelo impacto renovado que provoca quando nos reencontramos com ele ao longo do tempo. O fato é que dei boas risadas com a crônica do Veríssimo. E como acontece quando escuto algumas músicas da época - dessas que tocavam nas rádios - foi como se de repente tivesse voltado aos meus 15 anos de idade.

Abaixo, a crônica que provocou essa viagem no tempo. E, pra não deixar a postagem de pé quebrado, a frase do Wilde que estava procurando é a seguinte: "A América é o único país que foi da barbárie à decadência sem construir uma civilização no meio" - frase que está aí, no meio da crônica, sem indicação do verdadeiro autor (talvez porque pega mal pra um homem que é homem fazer citações de Oscar Wilde).


L. F. Veríssimo: 
Homem que é Homem


Homem que é Homem não usa camiseta sem manga, a não ser para jogar basquete. Homem que é Homem não gosta de canapés, de cebolinhas em conserva ou de qualquer outra coisa que leve menos de 30 segundos para mastigar e engolir. Homem que é Homem não come suflê. Homem que é Homem — de agora em diante chamado HQEH — não deixa sua mulher mostrar a bunda para ninguém, nem em baile de carnaval. HQEH não mostra a sua bunda para ninguém. Só no vestiário, para outros homens, e assim mesmo, se olhar por mais de 30 segundos, dá briga.

HQEH só vai ao cinema ver filme do Franco Zeffirelli quando a mulher insiste muito, e passa todo o tempo tentando ver as horas no escuro. HQEH não gosta de musical, filme com a Jill Clayburgh ou do Ingmar Bergman. Prefere filmes com o Lee Marvin e Charles Bronson. Diz que ator mesmo era o Spencer Tracy, e que dos novos, tirando o Clint Eastwood, é tudo veado.

HQEH não vai mais a teatro porque também não gosta que mostrem a bunda à sua mulher. Se você quer um HQEH no momento mais baixo de sua vida, precisa vê-lo no balé. Na saída ele diz que até o porteiro é veado e que se enxergar mais alguém de malha justa, mata.

E o HQEH tem razão. Confesse, você está com ele. Você não quer que pensem que você é um primitivo, um retrógrado e um machista, mas lá no fundo você torce pelo HQEH. Claro, não concorda com tudo o que ele diz. Quando ele conta tudo o que vai fazer com a Feiticeira no dia em que a pegar, você sacode a cabeça e reflete sobre o componente de misoginia patológica inerente à jactância sexual do homem latino. Depois começa a pensar no que faria com a Feiticeira se a pegasse. Existe um HQEH dentro de cada brasileiro, sepultado sob camadas de civilização, de falsa sofisticação, de propaganda feminina e de acomodação. Sim, de acomodação. Quantas vezes, atirado na frente de um aparelho de TV vendo a novela das 8 — uma história invariavelmente de humilhação, renúncia e superação femininas — você não se perguntou o que estava fazendo que não dava um salto, vencia a resistência da família a pontapés e procurava uma reprise do Manix em outro canal? HQEH só vê futebol na TV. Bebendo cerveja. E nada de cebolinhas em conserva! HQEH arrota e não pede desculpas.

*
Se você não sabe se tem um HQEH dentro de você, faça este teste. Leia esta série de situações. Estude-as, pense, e depois decida como você reagiria em cada situação. A resposta dirá o seu coeficiente de HQEH. Se pensar muito, nem precisa responder: você não é HQEH. HQEH não pensa muito!

Situação 1

Você está num restaurante com nome francês. O cardápio é todo escrito em francês. Só o preço está em reais. Muitos reais. Você pergunta o que significa o nome de um determinado prato ao maître. Você tem certeza que o maîtreestá se esforçando para não rir da sua pronúncia. O maître levará mais tempo para descrever o prato do que você para comê-lo, pois o que vem é uma pasta vagamente marinha em cima de uma torrada do tamanho aproximado de uma moeda de um real, embora custe mais de cem. Você come de um golpe só, pensando no que os operários são obrigados a comer. Com inveja. Sua acompanhante pergunta qual é o gosto e você responde que não deu tempo para saber. O prato principal vem trocado. Você tem certeza que pediu um "Boeuf à quelque chose" e o que vem é uma fatia de pato sem qualquer acompanhamento. Só. Bem que você tinha notado o nome: "Canard melancolique". Você a princípio sente pena do pato, pela sua solidão, mas muda de idéia quando tenta cortá-lo. Ele é um duro, pode agüentar. Quando vem a conta, você nota que cobraram pelo pato e pelo "boeuf' que não veio. Você: a) paga assim mesmo para não dar à sua acompanhante a impressão de que se preocupa com coisas vulgares como o dinheiro, ainda mais o brasileiro; b) chama discretamente o maître e indica o erro, sorrindo para dar a entender que, "Merde, alors", estas coisas acontecem; ou c) vira a mesa, quebra uma garrafa de vinho contra a parede e, segurando o gargalo, grita: "Eu quero o gerente e é melhor ele vir sozinho!

Situação 2

Você foi convencido pela sua mulher, namorada ou amiga — se bem que HQEH não tem "amigas", quem tem "amigas" é veado — a entrar para um curso de Sensitivação Oriental. Você reluta em vestir a malha preta, mas acaba sucumbindo. O curso é dado por um japonês, provavelmente veado. Todos sentam num círculo em volta do japonês, na posição de lótus. Menos você, que, como está um pouco fora de forma, só pode sentar na posição do arbusto despencado pelo vento.
Durante 15 minutos todos devem fechar os olhos, juntar as pontas dos dedos e fazer "rom", até que se integrem na Grande Corrente Universal que vem do Tibete, passa pelas cidades sagradas da Índia e do Oriente Médio e, estranhamente, bem em cima do prédio do japonês, antes de voltar para o Oriente. Uma vez atingido este estágio, todos devem virar para a pessoa ao seu lado e estudar seu rosto com as pontas dos dedos. Não se surpreendenda se o japonês chegar por trás e puxar as suas orelhas com força para lembrá-lo da dualidade de todas as coisas. Durante o "rom" você faz força, mas não consegue se integrar na grande corrente universal, embora comece a sentir uma sensação diferente que depois revela-se ser câimbra. Você: a) finge que atingiu a integração para não cortar a onda de ninguém; b) finge que não entendeu bem as instruções, engatinha fazendo "rom" até o lado daquela grande loura e, na hora de tocar o seu rosto, erra o alvo e agarra os seios, recusando-se a soltá-los mesmo que o japonês quase arranque as suas orelhas; c) diz que não sentiu nada, que não vai seguir adiante com aquela bobagem, ainda mais de malha preta, e que é tudo coisa de veado.

Situação 3

Você está numa daquelas reuniões em que há lugares de sobra para sentar, mas todo mundo senta no chão. Você não quis ser diferente, se atirou num almofadão colorido e tarde demais descobriu que era a dona da casa. Sua mulher ou namorada está tendo uma conversa confidencial, de mãos dadas, com uma moça que é a cara do Charlton Heston, só que de bigode. O jantar é à americana e você não tem mais um joelho para colocar o seu copo de vinho enquanto usa os outros dois para equilibrar o prato e cortar o pedaço de pato, provavelmente o mesmo do restaurante francês, só que algumas semanas mais velho. Aí o cabeleireiro de cabelo mechado ao seu lado oferece:
— Se quiser usar o meu...
— O seu...? 
— Joelho. 
— Ah...
— Ele está desocupado. 
— Mas eu não o conheço.
— Eu apresento. Este é o meu joelho. 
— Não. Eu digo, você...
— Eu, hein? Quanta formalidade. Aposto que se eu estivesse oferecendo a perna toda você ia pedir referências. Ti-au.

Você: a) resolve entrar no espírito da festa e começa a tirar as calças; b) leva seu copo de vinho para um canto e fica, entre divertido e irônico, observando aquele curioso painel humano e organizando um pensamento sobre estas sociedades tropicais, que passam da barbárie para a decadência sem a etapa intermediária da civilização; ou c) pega sua mulher ou namorada e dá o fora, não sem antes derrubar o Charlton Heston com um soco.

Se você escolheu a resposta a para todas as situações, não é um HQEH. Se você escolheu a resposta b, não é um HQEH. E se você escolheu a resposta c, também não é um HQEH. Um HQEH não responde a testes. Um HQEH acha que teste é coisa de veado.


*
Este país foi feito por Homens que eram Homens. Os desbravadores do nosso interior bravio não tinham nem jeans, quanto mais do Pierre Cardin. O que seria deste pais se Dom Pedro I tivesse se atrasado no dia 7 em algum cabeleireiro, fazendo massagem facial e cortando o cabelo à navalha? E se tivesse gritado, em vez de "Independência ou Morte", "Independência ou Alternativa Viável, Levando em Consideração Todas as Variáveis!"? Você pode imaginar o Rui Barbosa de sunga de crochê? O José do Patrocínio de colant? 0 Tiradentes de kaftan e brinco numa orelha só? Homens que eram Homens eram os bandeirantes. Como se sabe, antes de partir numa expedição, os bandeirantes subiam num morro em São Paulo e abriam a braguilha. Esperavam até ter uma ereção e depois seguiam na direção que o pau apontasse. Profissão para um HQEH é motorista de caminhão. Daqueles que, depois de comer um mocotó com duas Malzibier, dormem na estrada e, se sentem falta de mulher, ligam o motor e trepam com o radiador. No futebol HQEH é beque central, cabeça-de-área ou centroavante. Meio-de-campo é coisa de veado. Mulher do amigo de Homem que é Homem é homem. HQEH não tem amizade colorida, que é a sacanagem por outros meios. HQEH não tem um relacionamento adulto, de confiança mútua, cada um respeitando a liberdade do outro, numa transa, assim, extraconjugal mas assumida, entende? Que isso é papo de mulher pra dar pra todo mundo. HQEH acha que movimento gay é coisa de veado.

HQEH nunca vai a vernissage.

HQEH não está lendo a Marguerite Yourcenar, não leu a Marguerite Yourcenar e não vai ler a Marguerite Yourcenar.

HQEH diz que não tem preconceito mas que se um dia estivesse numa mesma sala com todas as cantoras da MPB, não desencostaria da parede.

Coisas que você jamais encontrará em um HQEH: batom neutro para lábios ressequidos, pastilhas para refrescar o hálito, o telefone do Gabeira, entradas para um espetáculo de mímica.

Coisas que você jamais deve dizer a um HQEH: "Ton sur ton", "Vamos ao balé?", "Prove estas cebolinhas".

Coisas que você jamais vai ouvir um HQEH dizer: "Assumir", "Amei", "Minha porção mulher", "Acho que o bordeau fica melhor no sofá e a ráfia em cima do puf".

Não convide para a mesma mesa: um HQEH e o Silvinho.

HQEH acha que ainda há tempo de salvar o Brasil e já conseguiu a adesão de todos os Homens que são Homens que restam no país para uma campanha de regeneração do macho brasileiro.

Os quatro só não têm se reunido muito seguidamente porque pode parecer coisa de veado.


terça-feira, 28 de junho de 2011


Mundo Animal

Foi em 2001, em plena virada do século... Só posso dizer que este debate mudou minha vida (reparem no Ratinho filhadaputamente botando lenha na fogueira.)




Boto a maior fé que o 11 de setembro e este confronto metafísico representaram o pontapé inicial 
da "Era de Aquário".

sábado, 25 de junho de 2011

Alfonsina e o Mar


O pouco da obra de Alfonsina Stormi que conheço se deve à curiosidade inspirada pela música de Ariel Ramírez e Félix Luna, "Alfonsina y el Mar", composta a partir de seu poema/ último bilhete,intitulado "Voy a Dormir". Dizem que a descoberta de um câncer e o suicídio do amigo e poeta Horácio Quiroga contribuíram pra que pulasse de um barco e morresse afogada, em Mar del Plata, no ano de 1938, quando tinha 46 anos de idade.

Alfonsina não caminhou vagarosamente mar adentro como sugere a música. Pelo menos não de forma literal. Porque sempre imagino o suicídio como uma lenta e irreversível imersão no próprio nada - nesse absurdo que rege  toda e qualquer existência humana, e que faz a gente se ocupar tanto justamente pra evitar encará-lo dentro dos olhos - até que o gesto de tirar a própria vida pareça a coisa mais natural a se fazer: uma confirmação daquilo que, pro suicida, se impõe como a única realidade - e o fato de estar vivo torna-se quase que um embaraço, um problema a ser resolvido da forma mais breve e indolor possível.

No livro "Mulheres", Eduardo Galeano faz o seguinte retrato da poeta, nascida por acaso na Suíça, mas argentina de corpo e alma:

"Quando há anos chegou a Buenos Aires vinda do interior, Alfonsina trazia uns velhos sapatos de saltos tortos e no ventre um filho sem pai legal. Nesta cidade trabalhou no que apareceu, e roubava formulários do telégrafo para escrever suas tristezas. Enquanto polia as palavras, verso a verso, noite a noite, cruzava os dedos e beijava as cartas do baralho que anunciavam viagens, heranças e amores.

O tempo passou, quase um quarto de século, e nada lhe foi dado pela sorte. Mas lutando com mão firme Alfonsina foi capaz de abrir caminho no mundo masculino. Sua cara de camundongo travesso nunca falta nas fotos que reúnem os escritores argentinos mais ilustres.

Este ano de 1935, no verão, soube que tinha câncer. Desde então escreve poemas que falam do abraço do mar e da casa que a espera lá no fundo, na avenida das madrepérolas."

Minha mãe tinha alguns discos da Mercedes Sosa e os ouvia todas as manhãs, enquanto arrumava a casa. Eu achava aquilo  um saco. Aos treze anos, era um projeto de roqueiro fundamentalista - e posso dizer que "Alfonsina y el Mar" me resgatou da tristeza e banalidade deste destino. Certa manhã, por pura falta do que fazer, peguei o encarte do disco e, quando a música acabou, alguma coisa havia mudado (hoje já dá pra arriscar que pra sempre).

Abaixo, a música, a letra e o poema. Deixo em espanhol mesmo. Basta saber que "huella" é "pegada", "sirenita" é "sereiazinha" e "nodriza", "babá" ou "ama-de-leite".



Alfonsina y el Mar
(Ariel Ramírez/ Félix Luna)

Por la blanda arena
Que lame el mar
Su pequeña huella
No vuelve más
Un sendero solo
De pena y silencio llegó
Hasta el agua profunda
Un sendero solo
De penas mudas llegó
Hasta la espuma
Sabe Dios qué angustia
Te acompañó
Qué dolores viejos
Calló tu voz
Para recostarte
Arrullada en el canto
De las caracolas marinas
La canción que canta
En el fondo oscuro del mar
La caracola
Te vas Alfonsina
Con tu soledad
¿Qué poemas nuevos
Fuíste a buscar?
Una voz antigüa
De viento y de sal
Te requiebra el alma
Y la está llevando
Y te vas hacia allá
Como en sueños
Dormida, Alfonsina
Vestida de mar
Cinco sirenitas
Te llevarán
Por caminos de algas
Y de coral
Y fosforescentes
Caballos marinos harán
Una ronda a tu lado
Y los habitantes
Del agua van a jugar
Pronto a tu lado
Bájame la lámpara
Un poco más
Déjame que duerma
Nodriza, en paz
Y si llama él
No le digas que estoy
Dile que Alfonsina no vuelve
Y si llama él
No le digas nunca que estoy
Di que me he ido
Te vas Alfonsina
Con tu soledad
¿Qué poemas nuevos
Fueste a buscar?
Una voz antigua
De viento y de sal
Te requiebra el alma
Y la está llevando
Y te vas hacia allá
Como en sueños
Dormida, Alfonsina
Vestida de mar

*

Alfonsina Stormi: Voy a Dormir


Dientes de flores, cofia de rocío,
manos de hierbas, tú, nodriza fina,
tenme prestas las sábanas terrosas
y el edredón de musgos escardados.

Voy a dormir, nodriza mía, acuéstame.
Ponme una lámpara en la cabecera;
una constelación, la que te guste;
todas son buenas, bájala un poquito.

Déjame sola; oyes romper los brotes ...
te acuna un pie celeste desde arriba
y un pájaro te traza unos compases para

que olvides ... Gracias ... Ah, un encargo:
si él llama nuevamente por teléfono
le dices que no insista, que he salido.


quarta-feira, 22 de junho de 2011


Foi o Joãozinho quem me deu a letra, por telefone, lá de Foz do Iguaçu: "Vai sair este domingo um conto do Mirisola na Folha. Parece que meio inspirado naquele passeio que demos por Copacabana..."

O Joãozinho é um cara espiritualizado. No dia seguinte ao referido passeio - segundo ele, cercado de pombas-giras mercenárias, banhadas por luzes caleidoscópicas vermelhas e azuis, e exus que rodavam em torno deles num pé só, como piorras gargalhantes - confidenciou pro Mirisola que tinha sonhado com umas coisas estranhas... Mais precisamente com galeões que atracavam numa Copacabana ainda selvagem, e com piratas que caminhavam pela praia na sua direção.

- Pirata?! - gritou o Mirisola.

- É... - respondeu o João, enquanto uma sombra lhe atravessava o semblante.

- Mas pirata mesmo, com tapa-olho e tudo?

O João balançou afirmativamente a cabeça, olhando pros lados, como se forças invisíveis estivessem se aproximando pra escutar a história.

- Caralho, Baixinho!... Tem certeza que não era o fantasma de algum folião?

Não pude comprar a Folha. E também não consegui ler o conto na versão on-line. Então pedi ao Mirisola que me enviasse o arquivo, no que fui gentilmente atendido. Citando um famoso profeta carioca, "gentileza gera gentileza" - e por isto, com a devida permissão, compartilho aqui o conto com outras pessoas que também não tiveram o prazer de ler o relato desta fantasmagórica despedida do Mirisola das ruas do Rio de Janeiro.

*

Marcelo Mirisola: 
Pro Dia Nascer Feliz


Aqui no centro do Rio não fico sozinho, a cidade me faz companhia. Como se eu fosse uma criança e a solidão me desse as mãos para atravessar ruas, entrar em butecos e encetar pequenas cosmogonias.  Sou um bêbado discreto e só um pouco ruminante. Um vulto triste e complacente que jamais estragaria a festa das almas trôpegas que ainda pensam que estão vivas. Parece uma ninharia, mas é muito se eu for comparar a São Paulo: cidade que nunca me ofereceu nada diferente de expurgo, amigos cinzas, exílio e uma solidão que não precisa de ninguém para existir. São Paulo me cospe.

No Rio, o movimento é exatamente o contrário. A paisagem, de braços dados com a solidão, além de me tragar, também me acompanha – embora meu amigo Miguel do Rosário tenha argumentos geográficos e políticos (agora não me lembro quais...) que provam que o centro do Rio não existe. 

Apesar de todas as evidências forjadas pela Secretaria de Turismo, o “Rio Antigo” não está preso numa fotografia amarelada. Isso é mentira pra decorar buteco de paulista. O Rio não é um lugar que têm promissórias a acertar com o tempo. Nem com o passado, nem com as olimpíadas de 2016. Antiga é a mania de demolir e reformar, de cumprir as obrigações do dia-a-dia, de abrir franquias e fazer “releituras”: antigo é o hábito de registrar o tempo em fotografias. 

O mais grave é não ouvir o lamento das pedras. Um erro. O fato de os séculos terem passado não impede que as pedras do Beco do Barbeiro continuem gritando. São as mais sofridas e indiscretas da cidade. Antigo é não transcender.

Os burocratas da Riotur não deviam ignorar os aflitos que buscam indultos na Igreja do Carmo, vizinha do Beco.  A bocarra aberta da Igreja continua – apesar de o purgatório não mais existir – cumprindo sua função de engolir almas.  Nem sei se é bom negócio. Mas sei que o tempo pisado, no Rio, é bem público e privado, assim como o desamparo e os pecados do mundo, bens que não prescrevem e não tem nome.

Butecos são butecos, conventos não são jaqueiras e igrejas não são espaços culturais da Oi. Têm certas coisas que demandam apenas rumores para que existam e sejam compreendidas: os passos de um homem na Rua do Ouvidor que apressam o ritmo do sujeito que vem à frente, a aflição dos dois a caminho do trabalho um pouco antes de olharem para a mesma mulher do outro lado da calçada. Aparentemente uma cena banal. Mas esse rumor tem o mesmo efeito do silêncio que congela as ruas e os séculos imediatamente depois que os homens apressados dobram à esquerda na direção da Sete de Setembro. Claro que fantasmas existem. Eu os vejo, eles me vêem – vivos e mortos a caminho do eterno pasto.  As almas do Telles juram que estou vivo. O gato preto que desaparece na próxima esquina e o arrepio que sobe pela espinha são lições de indiferença que cumprem séculos e séculos. Eu sei! Na manhã de setembro de 1711 uma espessa neblina baixou sobre a baía de Guanabara – lembram? – e facilitou a invasão de René Duguay-Trouin, o francês filho da puta que sequestrou a cidade e impôs o terror à população. Na mesma manhã de setembro, Vanusa perderia Antonio Marcos para Débora Duarte. A dor permanece nas manhãs de setembro. Em alguns casos, a redundância também. Quem é que precisa de provas?  

Os fantasmas da Rua do Senado espalharam boatos que o tempo não passa. Aconteceu anteontem. Depois de comer um sanduíche de bife a milanesa no Massapê, esquina da Gomes Freire com a Rua da Relação, resolvi seguir até a Lavradio e, de lá, meu plano era simples: pegaria o bagulho na Pça.Tiradentes e me pirulitaria o mais rápido possível em direção à Cinelândia. Nem bem havia dobrado a esquina, um sujeitinho de paletó de linho branco, cabelo engomado, chapéu panamá e sapato bicolor, me pediu fogo.

O malandro foi direto ao ponto:

- Veio de lá, parceiro?

Encruzilhada braba. Eu não estava a fim de pagar de otário justo no coração da Lapa, e respondi:

- Sim, nascido e criado em São Paulo. Mas estou aqui para resgatar meu coração que ficou espanado no Morro do Livramento. E você, malandro?  Saiu de um ensaio da Marie Claire ?

Se eu dissesse que o malandro evaporou estaria cometendo um ectopleonasmo (não resisti ao trocadilho, perdão). Segui na direção da Pça.Tiradentes, onde pegaria o bagulho perto da Estudantina e, no máximo em oito minutos a passos largos, chegaria ao meu destino: uma asinha de anjo no Galeto Liceu. Segundo meus cálculos, antes das 20 horas daria cabo do anjinho na brasa, e ainda me sobraria um tempo para conferir a qualidade do bagulho – ou parte dele.

As distancias no Rio são curtas, mas pesam. Ir da Lapa até a Praça XV significa cumprir uma maratona espiritual.  Agora, tem uma coisa que independe da circunscrição do susto, e que me chama muito a atenção: todos os fantasmas que encontro pelo caminho, todos eles tem sede.

Ontem à noite enchi a cara na Cinelândia.  Joel bate ponto lá.  O Barão, que também não sai do Amarelinho, contava que seu cardiologista o havia proibido de beber às refeições. Para não contrariá-lo, teve uma idéia brilhante: decidiu abolir as refeições. Voilà! O Barão é foda, o rosto de menino atrás da barba branca e os olhinhos que brilham como se fossem um radar em busca de cascas de banana, não me enganam. Eu escolhi não facilitar com a monarquia. O ideal, a tática mais indicada, é pedir outra dose e meter o pau no Getúlio. O mesmo vale pro Joel. Recém-chegado do Sergipe, descolou um emprego na redação do “Dom Casmurro”. Os dois e mais o Brício – que tem mania de bordejar sobre as mesas – armaram o QG no Amarelinho. 

À primeira vista não fui com a cara do Joel. Ele e Brício não se desgrudam. Tive a impressão que eram bookmakers, daqueles que trocam segredos de cavalariça. Me enganei. A Víbora, leia-se Joel Silveira, nos contou que está morando numa pensão na Rua das Marrecas, ali pertinho. Gamou na faxineira, logo “espichou a braguilha” na direção dela e teve sua recompensa. Sei não. Se é verdade ou mentira não me interessa: o melhor é que ele batizou a garota de “Miss-Marrecas”. Cafajeste e boa gente, glutão. Dois glutões, ele e o Barão. Só de ouvir o Barão pedir o famoso “talharim al pomidoro” dá vontade de comer a própria gravata. O Brício não, esse é mais de ficar ciscando. Antes de morrer já cultivava essa mania de bordejar sobre as mesas, um passarinho.

Por que ninguém “comete”  bondades? Sim, Barão, foi isso mesmo o que eu disse. Por que apenas arquitetam-se maldades, bolam-se golpes e crimes são urdidos na calada da noite?

O Barão não se fez de rogado e soltou alguma piada, da qual – sou obrigado a confessar – não me recordo, agora não.

Enchemos literalmente os esqueletos naquela noite, e brindamos à Miss Marrecas e ao Bussunda que acabava de chegar à mesa, meio sem jeito.

No dia seguinte, acordei no largo de São Francisco da Prainha. Ouvi um batuque vindo na direção da Pedra do Sal misturado com o barulho do mar que arrebentava logo ali nas muradas do cais – o problema é que ambos, o mar e o cais, haviam sido removidos de lá há pelo menos cem anos. A gente não deve contrariar as ressacas, venham de onde vier.  Não sei como, mas consegui ir do largo da Prainha até a Pedra do Sal, cheguei são e salvo na pensão da Tia Ciata que me recebeu de braços abertos. Vejam só; da Prainha até a pensão é perto, mas é longe. Sobretudo pruma alma vendida, trôpega e premida como esta que vos escreve e que era mais carne do que qualquer outra coisa depois do porre da noite anterior – e foi assim, com a alma sobre as costas, que subi os degraus escorregadios da Pedra do Sal e cheguei na pensão supracitada.

Os batuques que ouvi no largo da Prainha vinham de uma roda de Jongo, da qual Tia Ciata era madrinha. Podia estar louco, mas não surdo. “Os negros – ela me disse: – estão faceiros, mas nem eles e nem Deus não sabem, ainda não, que são brasileiros”.

Ela estava certa. Naquele 1889, o Cristo ainda não havia fixado residência no alto do Corcovado. Pelo sim, pelo não, resolvi pedir mais uma dose pra garantir guarida. A noite ia ser longa, e prometia.

Todavia o mar era o mesmo, eu lembro, o mar que há cem anos, aterrado e removido de si, rebentava das muradas do largo da Prainha, era o mesmo que ia e vinha e investia suas tempestades contra os meus miolos  encharcados de álcool e assombrações. Também me recordo – vagamente – das coordenadas de Tia Ciata, ela me disse que uma louca estaria à minha espera no Morro do Livramento, e que eu deveria entregar o bagulho na quinta-feira sem falta.

As promessas da noite foram cumpridas. Acordei em Ipanema, mais ou menos entre fevereiro de 1985 e maio de 2011. O dia havia nascido feliz e eu tinha pouco tempo para aproveitá-lo – mas antes eu teria que me livrar daquele maldito bagulho de uma vez por todas.




segunda-feira, 20 de junho de 2011

Guilherme de Britto e Nelson Cavaquinho

Maestros do Envelhecimento Íntimo


Eu disse certa vez, exagerando (ma non troppo...), que a música mais "alto astral" do Nelson Cavaquinho fala sobre o fim do mundo.

Todo mundo conhece o samba "Juízo Final", composto com seu mais constante parceiro, Guilherme de Britto - uma verdadeira jóia de concisão e profundidade: 

"O sol
Há de brilhar mais uma vez
A luz 
Há de chegar aos corações
Do mal
Será queimada a semente
O amor
Será eterno novamente"

Pura esperança e otimismo, não é mesmo? Mas só pra tudo ser desmentido nos próximos versos:

"É o juízo final
A história do bem e do mal
Quero ter olhos pra ver
A maldade desaparecer"

Ou seja: a maldade dos homens só tem chance de desaparecer quando o mundo inteiro (pelo menos pra gente) também  for prás picas... Como disse Paul Valéry, "o mais profundo é a pele." 

Em "Casa de Loucos", João Antônio faz o seguinte retrato desse maestro do "envelhecimento íntimo":

"Aquela capacidade em que é único, caminhar eternamente na linha divisória entre o sublime e o ridículo é o terreno perigoso em que é mestre. O compadre diz que isso é intuitivo e, diante da sua dor, permanece calado, até meio indiferente, sabendo tapeá-la a ponto dela passar por ele e não ficar nele. Provavelmente seja uma evasiva de Cavaquinho, que prefere dizer a dor dos outros:

- Eu não preciso fazer música pra mim. Faço para os outros, já que eles também sofrem como eu.

(...)

O compadre é um perene cantor da solidão e dos enganos do amor, do perdão na hora certa e dos diálogos com a morte, da beleza sensual da vida e do inferno do envelhecimento íntimo."

Grande João Antônio...


Na sequência, um pequeno documentário filmado por Leon Hirszman em 1969, onde Nelson passeia pelos pés-sujos de Bangu, seu habitat natural, e fala com muito bom humor sobre a vida e sobre o seu - como dizem as cabeças pensantes - "processo criativo".



Etta James + Doctor John

De surpresa: depois de muito tempo, dois velhos amigos se reencontram no palco. Reparem na cara dela quando percebe que é ele quem está ali, nos teclados. Ao invés de se atrapalhar, transforma em blues toda a emoção do reencontro. 
Pra completar, B. B. King na guitarra.


domingo, 19 de junho de 2011


Certeza Sacramental


A verdadeira extrema unção é o matrimônio.

Com um agravante: não há possibilidade de paraíso depois.



sexta-feira, 17 de junho de 2011


J. L. Borges:
Fragmentos de um Evangelho Apócrifo

3 Desventurado o pobre de espírito, porque sob a terra será o que agora é na terra.

4 Desventurado o que chora, pois já tem o hábito miserável do pranto.
5 Afortunados os que sabem que o sofrimento não é uma coroa de glória.
6 Não basta ser o último para ser alguma vez o primeiro.
7 Feliz o que não insiste em ter razão, pois ninguém a tem ou todos a têm.
8 Feliz o que perdoa os outros e o que perdoa a si mesmo.
9 Bem-aventurados os mansos, porque não condescendem à discórdia.
10 Bem-aventurados os que têm fome de justiça, porque sabem que a nossa sorte, adversa ou piedosa, é obra do acaso, que é inescrutável.
11 Bem-aventurados os misericordiosos, porque sua felicidade está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prêmio.
12 Bem-aventurados os de coração puro, porque vêem Deus.
13 Bem-aventurados os que padecem perseguição por causa da justiça, porque lhes importa mais a justiça do que seu destino humano.
14 Ninguém é o sal da terra; ninguém, em algum momento da sua vida, não o é.
15 Que a luz de uma lâmpada se acenda, embora nenhum homem a veja. Deus a verá.
16 Não há mandamento que não possa ser infringido, e também os que digo e os que os profetas disseram.
17 Aquele que matar pela causa da justiça, ou pela causa que ele crê justa, não tem culpa.
18 Os atos dos homens não merecem nem o fogo nem os céus.
19 Não odeies o teu inimigo, porque, se o fazes, és de algum modo seu escravo. Teu ódio nunca será melhor que a tua paz.
20 Se te ofender tua mão direita, perdoa-a; és teu corpo e és tua alma, e é árduo, senão impossível, fixar a fronteira que os divide…
24 Não exageres o culto da verdade; não há homem que no fim de um dia não tenha mentido com razão muitas vezes.
25 Não jures, porque todo juramento é uma ênfase.
26 Resiste ao mal, mas sem espanto e sem ira. A quem te ferir na face direita, podes oferecer a outra, sempre que não te mova o temor.
27 Não fale de vinganças nem de perdões; o esquecimento é a única vingança e o único perdão.
28 Fazer o bem ao teu inimigo pode ser obra de justiça e não é árduo; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.
29 Fazer o bem a teu inimigo é o melhor modo de satisfazer a tua vaidade.
30 Não acumules ouro na terra, porque o ouro é pai do ócio, e este, da tristeza e do tédio.
31 Pensa que os outros são justos ou o serão, e, se não é assim, não é teu o erro.
32 Deus é mais generoso que os homens e os medirá com outra medida.
33 Dá o que é santo aos cães, joga tuas pérolas aos porcos; o importante é doar.
34 Procura pelo prazer de procurar, não pelo de encontrar…
39 A porta é que escolhe, não o homem.
40 Não julgues a árvore por seus frutos, nem o homem por suas obras; podem ser piores ou melhores.
41 Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso dever é edificar como se fosse pedra a areia…
47 Feliz o pobre sem amargura ou o rico sem soberba.
48 Felizes os valentes, os que aceitam com ânimo semelhante a derrota ou as palmas.
49 Felizes os que guardam na memória palavras de Virgílio ou de Cristo, pois estas darão luz aos seus dias.
50 Felizes os amados e os que amam e os que podem prescindir do amor.
51 Felizes os felizes.

(Do livro "Elogio da Sombra", Obras Completas, ed. Globo)