quarta-feira, 31 de agosto de 2011


Pra quem viveu a infância e a adolescência no final dos anos 70 e ao longo dos 80, esse sentimento esquisito que é a nostalgia - como se o coração girasse dentro do peito pra olhar o que passou - não costuma primar pelo que se chama por aí de "bom gosto" (piores, só os 90 e os 00). Mas há honrosas exceções: como esses dois artistas que, ao emprestar seu talento pra ilustrar obras alheias, acabaram emprestando também um pouco de beleza e humor à memória afetiva de muita gente. 



Benício (José Luiz Benício)








 


Elifas Andreato

 





Cartaz para "A Morte do Caixeiro Viajante"

"Ópera do Malandro"


quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Duas ou Três Sugestões de Borges
- em homenagem ao que seria (e de certa forma o é) 
seu 112o ano de vida -


O tempo ensinou-me algu­mas astúcias: evitar os sinônimos, que têm a desvan­tagem de sugerir diferenças imaginárias; evitar hispanismos, argentinismos, arcaísmos e neologismos; pre­ferir as palavras habituais às palavras assombrosas; intercalar em um relato traços circunstanciais, exigidos agora pelo leitor; simular pequenas incertezas, uma vez que se a realidade é precisa a memória não o é; narrar os fa­tos (isto aprendi em Kipling e nas sagas da Islândia) como se não os entendesse completamente; recordar que as normas anteriores não são obrigações e que o tempo se encarregará de aboli-las (...) 

É curioso o destino do escritor. No início é barroco, vaidosamente barroco, e ao cabo dos anos pode lograr, se lhe são favoráveis os astros, não a simplicidade, que não é nada, mas a modesta e secreta complexidade.





   - Com mais de setenta anos muito bem vividos já dá pra saber, pelos olhos, qual a verdade de uma mulher...

   - ...

   - ... nem que seja pra me enganar uma última vez.



terça-feira, 23 de agosto de 2011

Araki











  
  "Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convém". 
                            
                           (1 Coríntios 10:23a)



sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O Último dos Valentões


Existem poucas coisas melhores que dar de cara com um filme desses, ainda no início, numa madrugada de solidão e insônia. Até que tento ajustar minha ampulheta biológica ao ritmo das pessoas normais - mas sempre quando a areia da tarde já escoou quase toda, invento de virá-la de novo e abrir um livro, ligar a tv, brigar com as vírgulas do romance, sair pra rua ou, em sequência, todas as alternativas acima. 

Ontem me embrenhei no "São Bernardo", do Graciliano Ramos. Hoje, fiquei até agora vendo este filme... Mitchum encarna Marlowe: dá pra perder? E tem ainda uma ponta do Stallone, num dos primeiros e melhores papéis da sua carreira: entra mudo, come uma putinha, dá três pipocos na caftina e sai calado.  

Nada mais modorrento do que um dia atrás do outro com uma madrugada no meio.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Graciliano por Liberati

Graciliano Ramos: 
Infância (trecho)

Essas moças tinham o vezo de afirmar o contrário do que desejavam. Notei a singularidade quando principiaram a elogiar o meu paletó cor de macaco. Examinavam-no sérias, achavam o pano e os aviamentos de qualidade superior, o feitio admirável. Envaideci-me: nunca havia reparado em tais vantagens. Mas os gabos se prolongaram, trouxeram-me desconfiança. Percebi afinal que elas zombavam, e não me susceptibilizei. Longe disso: julguei curiosa aquela maneira de falar pelo avesso, diferente das grosserias a que me habituara. Em geral me diziam com franqueza que a roupa não me assentava no corpo, sobrava nos sovacos. Os defeitos eram evidenciados, e eu considerava estupidez virem indicá-los. Dissimulavam-se agora num jogo de palavras que encerrava malícia e bondade. Essa mistura de sentimentos incompatíveis assombrava-me - e pela primeira vez ri de mim mesmo. A doçura picante não me reformava, é claro, mas exibia-me como eu poderia ter sido se a natureza e o alfaiate me houvessem dado os recursos indispensáveis. Satisfazia-me a idéia de que a minha figura não provocava inevitavelmente irritação ou desdém, e as novas amigas surgiram-me compreensivas e caridosas. Guardei a lição, conservei longos anos esse paletó. Conformado, avaliei o forro, as dobras e os pospontos das minhas ações cor de macaco. Paciência, tinham de ser assim. Ainda hoje, se fingem tolerar-me um romance, observo-lhe cuidadosamente as mangas, as costuras, e vejo-o como ele é realmente: chinfrim e cor de macaco. 

sexta-feira, 12 de agosto de 2011


Nosferatu

Este bicho me tirou o sono quando guri. Por acaso, de passagem pelo quarto dos pais, a tv ligada no Fantástico: na época, com a narração dramática do Cid Moreira ou do Sérgio Chapelin, o Fantástico sempre encerrava com uma matéria que tornava mais difícil o nosso despertar na segunda-feira (lembro de outra que simulava, pelos corredores vazios do Edifício Elba, os gritos das pessoas que morreram queimadas, e  fez com que eu evitasse ficar sozinho em corredores desertos, escadarias e elevadores por um bom tempo).

A matéria da vez era sobre a existência ou não de vampiros, ilustrada com imagens do filme de Murnau.

Emergindo num canto da tela - primeiro a sombra corcunda, de dedos longos, retorcidos, que terminavam em garras. Depois, na contraluz da porta, a silhueta tensa, braços pendidos ao longo do corpo, olhos arregalados de olheiras profundas, que brilhavam no escuro como se cheios de pavor pela própria figura. Não tinha a elegância de um Cristopher Lee e dos sugadores de carótidas subsequentes: tudo naquele bicho era medo, ameaça - os dentes incisivos, quase patéticos, no lugar das presas - e a certeza que, com ele, não haveria possibilidade de negociação. 


Além disso, o nome: Nosferatu - muito pior que "vampiro", palavra bonita, que ameaça encrespar mas arredonda no fim, ou "Drácula", o nome original, que mesmo sussurrada se assemelha a um grito - e todos sabem a importância do silêncio ou, no máximo, de uma trilha em tom menor quando o objetivo é provocar o susto.

"Nosferatu" sempre me pareceu uma ameaça que desliza pelos pontos cegos da casa, onde a noite parece coagular, enrodilhada feito uma serpente, uma voz repentina, grunhida próxima ao ouvido, um hálito com cheiro de ratazanas e a língua úmida e fina que anestesia a carne antes do estalo da jugular. 

Filmes antigos de terror, mudos e em preto e branco, sempre me pareceram mais eficientes no seu objetivo de nos encagaçar que os de hoje, mesmo com a atual pirotecnia, excesso de sangue e exagero de efeitos sonoros. Talvez porque, em se tratando de tempos remotos, as coisas se igualem na nossa memória - tanto faz se os anos 20 ou a Idade Média - e por isso, ao me embrenhar nesses cenários góticos e atuações pra lá de "expressionistas", me venha a sensação de estar assistindo o registro de algo que realmente aconteceu. 


...e o guri tapava a cabeça, quase sem respirar, pelas sombras que se transmutavam em morcegos pelo teto e pelas paredes do quarto. 

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Deltas

Florianópolis é a ilha que mais cabe no conceito de ilha que eu conheço. Há quarenta e oito horas a chuva não dá trégua: nem toró, nem garoa - sempre no mesmo ritmo. 

Lenha verde (ou úmida) estalando numa fogueira, pés descalços aos trotes na lajota fria, uma adolescente mascando chicletes de boca aberta e com fones de ouvido, que estoura sucessivas bolas no ritmo da música - como os esquimós têm mais de 56 nomes pra designar o que chamamos de "branco", morar em Floripa nos habilita a inventar meia centena metáforas pro barulho da chuva. 

Um charco: ou uma porção de terra(?) cercada de água por absolutamente  TODOS os lados.

*
Ontem liguei a tv no início da madrugada e, na Cultura, estava passando um documentário sobre este cara aqui:




Depois que acabou, fiquei até as cinco da matina batucando no teclado e, antes de dormir, caí na besteira de ligar de novo a tv - e só  consegui pegar no sono lá pelas seis e meia, por causa de outro documentário, no Canal Brasil, desta vez sobre este sujeito:



Sonhei que cavalgava, despacito, por uma grande e encharcada planície entre dois rios.



sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Três por Quatro da 
Geração Coca-Zero


Me identifico muito com essa crônica do João Ubaldo Ribeiro, publicada aí embaixo. Também tenho a cara errada. Senti isso de maneira mais contundente quando estive em Paris e, caminhando pelo metrô, fui medido de cima a baixo por um senhor bem vestido, que logo depois comentou com a esposa, no melhor português com sotaque baiano: "Vamos pegar outro vagão que esse sujeito aí tem a maior cara de terrorista". Isso sem contar as passagens pelas sucessivas alfândegas: apesar de ser uma cruza improvável de alemão, português, espanhol e índio paraguaio, não é raro me atribuírem ascendência árabe. Cara de escritor, então, nem se fala. A coisa que mais ouvi em São Paulo, quando lancei  por lá o meu livro nos idos de 2004, foi "você não se parece com as coisas que você escreve" - uns oito ou nove viados com cara de mau me disseram a mesma coisa. Sim, porque pra essa corriola um escritor tem que ter "cara" - e, de preferência, uma "cara maldita", seja lá o que isso signifique. Conheci meia dúzia de "escritores" que só tinham isso - a cara - e fazem até hoje muito sucesso por baladas, feiras e antologias. Também rio muito e falo muita bobagem em mesa de bar - e "mostrar muito os dentes" (a não ser, talvez, pra rosnar) é outra coisa que não pega bem em certas rodas literárias. Há que se ter "postura", "estilo" (no sentido fashion do termo), espírito marketeiro e muito saco pra encarar esse ossobuco, coisa que - por motivos que englobam genética e senso do ridículo - definitivamente eu não tenho. A alternativa seria dar a bunda, tatuar a cara, virar redator em alguma agência de publicidade ou arranjar uma biografia exótica, que envolva empregos de go-go boy em Cingapura e orgias com pigmeus besuntados em óleo de peroba nos mais ermos confins da Botsuana. Dispenso. Meu tempo já tinha passado décadas antes de eu nascer. E reconheço que tudo isso, na época, até teve seu lado divertido. Talvez a idade venha me presentear com "a cara das coisas que escrevo" e, desse jeito, me prepare pro futuro. Pois prevejo o dia em que irão lançar uma BookTV e o vídeo-clip do cidadão lendo sua obra (autobiográfica e em primeira pessoa) será muito mais importante do que sua verborragia rimada e impregnada de referências popLoucurinhas e idiossincrasias da Geração Coca-Zero.


*

João Ubaldo Ribeiro: 
A Cara Errada

João Ubaldo por Mário Alberto

Mesmo quem nunca encontrou problemas por ter a cara errada talvez se veja comiserado pelos sucessos que ora passo a narrar. Eu tenho a cara errada e já me resignei ao destino ao qual por ela sou condenado, esperando apenas conseguir que minha experiência se revele útil a algum eventual leitor, que talvez até padeça de problema análogo sem saber. Evidentemente, meu primeiro problema é não ter cara de escritor e, muitíssimo menos, de intelectual — esta última nem pensar. Cara de escritor é, por exemplo, a cara de José de Alencar, que morreu menos velho do que hoje sou, mas sempre ostentou uma venerável cara de escritor. Assim como ele, vários escritores contemporâneos meus, creio mesmo que a maior parte, têm a cara certa. No máximo, posso ser acatado como um ex-zagueirão reserva do Olaria dos velhos tempos ou um coroa exibido, que não tem pejo de curtir sua aposentadoria como auxiliar de escrivão de um cartório hoje extinto, pegando umas merrecas do INSS e bebendo cerveja junto a similares, no carteado da pracinha em frente ao boteco. Certa feita, em Salvador, eu era esperado para fazer uma conferência, compareci e fui barrado. Fiquei esperando na porta, até que o professor que dirigia os trabalhos achou que eu não ia aparecer e começou a pedir desculpas à platéia apinhada, e aí eu gritei de fora que não tinha faltado ao compromisso, tinha simplesmente sido barrado pela moça que controlava a entrada e, depois que eu disse que não portava o cartão que me daria direito a ingressar, me endereçara um sorriso de desdém, ao me ouvir dizer que o conferencista era eu.
Não os entupirei de episódios tediosos, mas dou alguns, à guisa de ilustração. Na Alemanha, tenho cara de turco. Na França, tenho cara de argelino mestiçado. Nos Estados Unidos, tenho todas as caras possíveis — turco, árabe, cucaracha, crioulo disfarçado ou hispano, termo este aplicado a todos os de fala latina que não francês, italiano, ou línguas igualmente nobres. Nem cara de português, minha verdadeira ascendência, eu tenho, como me comprovaram dezenas de vezes, de tascas a táxis, em paragens lusitanas. Adicione-se a isso a circunstância de que, mesmo envergando um terno feito sob medida por um alfaiate inglês, coisa, aliás, que nunca fiz, não só porque não tenho dinheiro para pagar nem o alfaiate do Olaria dos bons tempos, quanto mais inglês, como porque nunca fui um exemplo de elegância e assumo a aparência andrajosa que me acompanha, qual maldição de fada má ao berço, desde que me entendo, cinco minutos depois de vestir a melhor roupa possível.
Na semana que ontem se findou, andei, seguindo minha inelutável sina, eis que detesto viajar e vivo viajando, pelos Estados Unidos, a cuja capital fui convidado pelo Kennedy Center, em Washington, para uma irrecusável homenagem ao meu absolutamente insubstituível amigo Jorge Amado, que me fará falta até o dia em que eu mesmo for embora. Não posso, sem mentir ou exagerar, alegar que fui vítima de maus-tratos, a não ser, levemente, no Antônio Carlos Jobim, por uma funcionária brasileira da companhia americana que me transportou e que acreditava ser americana e ter cara de irmã de Mike Jordan — ela que vá lá e encare essa, para ver o que é bom para a tosse.
Mas recebi todo o tratamento a que minha cara dá direito. Meu consolo é que, agora de volta ao Leblon, é que me sinto — como direi? — meio desinfetado. Viajei via Atlanta, de onde faria transbordo para Washington e, apesar de minha bagagem haver sido despachada diretamente para meu porto de chegada, tive que retirá-la, para, depois de nova inspeção, redespachá-la a Washington. Estava esperando, diante daquela esteira rolante onde a mala da gente é sempre a última a aparecer, quando um jovem surgiu diante de mim levando um cachorrinho beagle pela coleira, me pediu gentilmente que me afastasse um pouco dos outros passageiros e falou com ele:
— Cheire, Snoopy, cheire!
Um pouco desacostumado a ser cheirado tão flagrantemente, ainda mais da forma pouco elegante com que Snoopy o fazia, fiquei um pouco sem graça e com medo de que ele discordasse de meu desodorante, mas não houve nada de mais assustador além do tempo eletrizante que o adorável cãozinho levou cheirando minha sacola e partes de meu corpo que prefiro esquecer, após o que se afastou desdenhosamente, me deixando aliviado, mas um tanto ofendido pelo desprezo com que avaliou meus cheiros e partiu para cheirar mais uns terceiro-mundistas que se encontravam nas vizinhanças.
Inspecionado e interrogado aqui no Brasil, devidamente cheirado por Snoopy e passado por diversas barreiras, achei que já estava livre de novas suspeitas, mas a cara me traiu novamente. Enquanto eu esperava na fila para entregar meu cartão de embarque Atlanta/Washington, um senhor uniformizado dirigiu um olhar avaliador à dita fila, olhou para mim e me solicitou gentilmente que fosse até um canto, não propriamente reservado, onde me obrigou, sempre muito cortesmente, a praticamente ficar de cueca. Não, exagero meu, não chegou a isso, mas me ordenou que revirasse todos os bolsos, pusesse tudo em cima de uma mesa, na qual meu chaveiro recebeu mais atenção do que em sua vida toda, tirasse os sapatos, também vigorosamente inspecionados e mostrasse a carteira, gloriosamente recheada de reais. As posturas em que fui obrigado a ficar, com as mãos para o alto e o traseiro para cima, não foram as mais dignificantes em que já me vi, mas mantive a dignidade e procurei não envergonhar a Bahia. É difícil manter a dignidade com os braços levantados e a bunda empinada e apalpada, mas creio que me saí bem. E, assim, num vôo em que, quando o avião chegou a menos de 30 minutos de Washington, ninguém podia se levantar nem para fazer xixi, cheguei triunfalmente à capital do nosso Grande Irmão do Norte, na qual tampouco envergonhei nem a Bahia nem vocês, numa mesa-redonda (aliás, painel, que é como se diz modernamente) da qual Sônia Braga fazia parte e me deu diversos beijos na bochecha. Pois é: vocês podem nunca ter sido cheirados por Snoopy nem ter tido a bunda apalpada em público sem sapatos, mas, em compensação, ninguém aí tomou beijinhos da Sônia Braga na bochecha, estão pensando o quê?

quinta-feira, 4 de agosto de 2011


A Queda

Outro filme que não me canso de assistir - e que provoca reflexões necessárias nessa época de bebês abandonados em lixeiras, atiradores que chegam distribuindo morte com ou sem motivo aparente e na qual o fundamentalismo - político e religioso - ameaça renascer de forma tão perigosa quanto sedutora. Ou melhor: perigosa porque sedutora - já que cotidianamente alimentado pelos temores, sonhos, preconceitos - pela festiva e confortável omissão das chamadas "pessoas de bem".

Um monstro só é terrível pela semelhança fugidia e/ou deformada que ele tem com nosso próprio rosto. Essa familiaridade que mal se anuncia e logo se esconde, essa assimetria insolúvel, que a um só tempo nos afasta e aproxima das ações e das figuras monstruosas  está na base do desconforto, dessa espécie de angústia - semelhante a que experimentamos frente a uma ameça que não conseguimos distinguir não pela distância, mas por estar muito próxima aos olhos

Humanizar o monstro sem resvalar na caricatura ou - o que é pior - na condescendência é um desafio pra qualquer teórico ou artista. E é por isso que o Hitler de Bruno Ganz (e do diretor Oliver Hirshbiegel) pode ser considerado genial. Enquanto alemães, eles não se recusaram a olhar no fundo deste espelho trincado, vergonhoso, juntar os estilhaços e formar com eles a face de um homem - com todos os pavores, fragilidades e também com todas as coisas terríveis que, dentre tudo o que se move pela face da terra, apenas um homem é capaz de fazer. Uma forma de avisar aos navegantes: o monstro passeia pelo nosso convés. Ignorá-lo é compactuar com ele. Porque o monstro se alimenta principalmente da recusa de vê-lo, da ausência de pensamento - da insistência em apartá-lo para um limbo obscuro, chamado "loucura", "aberração" ou coisa que os valha. Ao ignorarmos sua humanidade intrínseca, o monstro cresce, fortalecido. Multiplica-se. Adquire justificativas plausíveis e se espalha, capcioso e sutil - até que tarde demais percebemos que o urro (Heil!), cercado de milhares de urros iguais, saiu de dentro da nossa garganta.



segunda-feira, 1 de agosto de 2011


O que virá a seguir será uma traição: vergonha na cara, porém, nunca foi meu forte. Até me esforço pra seguir na linha - se este mundo não fosse um mapa de descaminhos, tentações, histórias impossíveis de mais tarde contar pros nossos netos - tantas noites com tantos bares abertos e tantas mulheres do próximo e de ninguém com as rebembelas enfrutecidas e as consciências previamente inocentadas pela desculpa do porre.

Mas o que virá a seguir não tem a ver com sacanagem (pelo menos não no sentido estrito do termo). É que recolhi uns versos dos livros "Do Desejo", "Da Noite" e "Amavisse" - todos da senhora H. - e me deu vontade de publicá-los bastardos, descolados do resto do poema. 

Que a senhora H. me perdoe, onde quer que ela esteja, mas ela deve saber que qualquer homenagem é, em si, também uma traição - e não tenho culpa se em meio ao abrigo meticulosamente construído do poema um ou outro  verso se destaque e aguarde, de bico aberto, pra que a gente o alimente com pedaços mais generosos do nosso espanto. 

(Pra quem estranhou o estilo meio rococó desta introdução, aqui vai um aforismo do "Manual de Sobrevivência Noturna" - livro de minha autoria que, pelo pouco de pudor que ainda me resta, jamais foi escrito: "Quanto mais românticas e derramadas forem as palavras, menor será a necessidade de cuspe depois").


Hilda Hilst
(versos escolhidos à traição)

DO DESEJO


Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.


*

Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.

*

E que escura me faço se abocanhas em mim
Palavras e resíduos.


*
Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?


*
E te repito: por que haverias 
De querer minha alma na tua cama?


*
Para pensar o Outro, eu deliro ou versejo.
Pensá-LO é gozo. Então não sabes? INCORPÓREO É O DESEJO.



DA NOITE


Vi éguas da noite entre os escombros
Da paisagem que fui. Vi sombras, elfos e ciladas.
Laços de pedra e palha entre as alfombras
E vasto, um poço engolindo meu nome e meu retrato.


*
Vem dos vales a voz. Do poço.
Dos penhascos.
Mas ressoa cruel e abjeta
Se me proponho ouvir. Vem do nada.
Dos vínculos desfeitos. Vem dos ressentimentos.
E sibilante e lisa
Se faz paixão, serpente, e nos habita.


*
O que é Isso
Que recobre o osso
Este novelo liso e convulso
Esta desordem de prazer e atrito
Este caos de dor sobre o pastoso.


Ossos. Carne. Dois Issos sem nome.


*
Costuro o infinito sobre o peito
Como aqueles que amam.


*
Que te demores
Cobrindo-me de sumos e de tintas
Na minha noite de fomes.

Nunca houve mulher como Hilda

AMAVISSE


Porco-poeta que me sei, na cegueira, no charco
À espera da Tua Fome, permita-me a pergunta Senhor de porcos e de homens:
Ouviste acaso, ou te foi familiar
Um verbo que nos baixos daqui muito se ouve
O verbo amar?

Porque na cegueira, no charco
Na trama dos vocábulos
Na decantada lâmina enterrada
Na minha axila de pelos e carne
Na esteira de palha que me envolve a alma

Do verbo apenas entrevi o contorno breve:
É coisa de morrer de matar mas tem som de sorriso,
Sangra, estilhaça, devora, e por isso
De entender-lhe o cerne não me foi dada a hora.

É verbo?
Ou sobrenome de um deus prenhe de humor
Na péripla aventura da conquista?


(Todos os versos foram transcritos do livro cuja capa ilustra este post. Compõe o volume - organizado e introduzido por Alcir Pécora - as obras "Do Desejo", "Da Noite", "Amavisse", "Via Espessa", "Via Vazia", "Alcoólicas" e "Sobre a Tua Grande Face".)