quinta-feira, 23 de julho de 2009



O Paraíso no Retrovisor


Virar as costas pro mar morando numa ilha não é fácil. É mais ou menos como aquela história de que o inferno astral de cada um termina no dia do seu aniversário. Acompanhe: se o dia seguinte ao aniversário já é a véspera do próximo, o tal inferno só tem um dia de trégua. Ou, como podem objetar os mais pessimistas, não acaba nunca: conheço muita gente que acha de se deprimir justamente quando (ou por que) faz aniversário.

A inexorável passagem do tempo, a escassez de presentes na infância, o possível abuso sofrido por parte de um mágico ou palhaço. Sempre achei pra lá de suspeitos os caras que realizam truques manipulando aquelas bexigas fálicas – enfim: razões não faltam pro sujeito lamentar o dia do seu nascimento.

Os astrólogos de plantão dizem que não é bem assim. Que o tal inferno tem a ver com o ciclo do sol, e se resume apenas aos trinta ou quarenta dias anteriores ao período astral regido pelo signo da vítima. O que me obriga a concluir que morar numa ilha e virar as costas pro mar, na verdade, não tem nada a ver com esta história de aniversário e inferno astral.

Vou tentar ser mais feliz nas próximas metáforas.

Sempre fui um animal urbano, de hábitos noturnos. Não pra fazer pose ou bancar o outsider, como é muito comum hoje em dia – aliás: só acredito em boêmios e escritores que não entraram nesta vida exatamente por escolha própria, muito pelo contrário – mas porque não podia ser de outro jeito: simplesmente nunca consegui dormir à noite.

Uma infância de olhos abertos, no escuro, e, nas madrugadas de sexta e de sábado, quando era permitido ver televisão até mais tarde, com a imaginação e a libido mergulhadas em programas do tipo “desaconselhável” – Plantão da Madrugada, Sessão Privê, Cine Brasil – até hoje os melhores.

A escola um martírio. Esportes, nem pensar. Por outro lado, a companhia dos livros, das rádios noturnas e das músicas que a burrice das cabeças-de-mercado só permite tocar nestas horas.

Porto Alegre, 1985. Na Ipanema FM - a "Hora do Morcego”.

Até hoje, quando escuto pela primeira vez algum som que me agrada, é aquele guri desacorçoado e punheteiro quem, no fundo, se emociona. Todo o aprendizado diz mais respeito ao clima dentro do qual se aprendeu a coisa do que à coisa propriamente dita (se é que vocês me entendem). Por isto nossa memória é composta, na maior parte, pelas maravilhosas “coisas que não prestam”. Ainda vou escrever um ensaio sobre isto. Que provavelmente perderei na mesa de algum pé-sujo.

No fim da adolescência, portanto, as ruas transversais e os botecos que não fecham se tornaram meu ideal de paraíso.

Morar numa ilha te faz refém da paisagem. E paisagem é um troço que só tem sentido à luz do dia. Nada mais sinistro do que ser surpreendido pela noite no mar ou no meio do mato. Não que uma cidade à noite seja menos perigosa. A questão é que os bichos noturnos, que habitam o mato e o oceano, costumam se virar melhor com ventanias, correntes submersas, cipós, vagalhões, urtigas e vegetação cerrada. E também – isto é preconceito meu, de jacaré do asfalto – eles, os animais noturnos, não costumam ir muito com a tua cara. Se no meio do mato tivesse pelo menos algum bar aberto vinte e quatro horas, até que seria possível – com o espírito etilicamente rebobinado em termos evolutivos – encarar a bicharada de igual pra igual.

Momento de sabedoria. Está na primeira página do “Manual de Sobrevivência Noturna” (jamais escrito): quando enganar o inimigo se mostra impossível, a saída é tentar enganar a si próprio.

Moro em Florianópolis há quase vinte anos. Um lugar que não satisfeito em pertencer a uma ilha, ainda se proclama “Ilha da Magia”. Quem veio pra cá apenas no verão, provavelmente foi iludido pela cenografia paradisíaca.

A verdade é que faz frio em grande parte do ano. E chove pra caralho. É um parto de girafa encontrar, fora de temporada e durante a semana, algum bar que esteja aberto depois das duas. A desolação é a regra. E mesmo nos fins de semana os bares disponíveis são – na esmagadora maioria – freqüentados por esta adolescência hedionda, que se estende dos doze aos sessenta anos, invariavelmente lobotomizada pelos mesmos sertanejos, o mesmo axé fora de época, as mesmas mãozinhas pro ar e pezinhos saindo do chão, ritmados pelo mesmo e insuportável bate-estacas. Todos os parceiros de copo que arranjei por aqui eram, além de bebuns, também surfistas ou praticantes juramentados de algum “esporte radical”. Muitos se afogaram. Outros se espatifaram de asa delta, parapente ou coisa que os valha – ou se perderam no meio de alguma trilha e nunca mais foram encontrados. Os que tiveram menos sorte viraram psicanalistas, advogados, dentistas, funcionários públicos, gurus esotéricos e pais de família. Teve até um desgraçado que se elegeu vereador – participando, inclusive, da criação da lei que proíbe os bares de permanecerem abertos depois das duas da manhã.

De modo que o sujeito tem que escolher: ou é tragado pelo dia, pela paisagem e por todas as suas armadilhas. Ou o sujeito resiste.

Ao escrever isto me dei conta de uma coisa: talvez só continue morando neste lugar pra não pedir arrego, não dar o braço a torcer. Morar em Florianópolis. E, ao mesmo tempo, tentar viver a noite – este sim o verdadeiro esporte radical.

Este blog tem dupla função. A primeira é disfarçar a loucura de ficar por aí falando sozinho, contar pra ninguém as histórias desta noite avarenta, mostrar o negativo do cartão postal, cuja existência pouca gente conhece. A outra é transcrever os guardanapos rabiscados (os inteligíveis pelo menos) que acumulei pelas madrugadas nestes quase vinte anos de abnegada resistência.

Um livro do Bataille ou do Onetti debaixo do braço. Uma música do Aldir Blanc ou do Chet Baker a retinir nos ouvidos. Nenhum interlocutor deformado pelo fundo do copo – o que pode até ser considerado uma benção – e assim se segue. De costas pra paisagem. Remando.

Até cansar.



14 comentários:

Anônimo disse...

Mas você tá pensando mesmo em tocar essa birosca?
Todo dia? Acho que é mais trabalhoso que ser dono de bar. Mas como são as paisagens que escolhem a gente (e muito raro acontece o contrário), bem, tenho certeza que esse blogue ( se você realmente levá-lo adiante...) vai ser mais proveitoso que a Ponte Hercílio Luz de madrugada
Boa sorte. E um abraço,
MM

Anônimo disse...

Porra, Nilo! Hoje já é dia 28. Não vai mandar mais nada?
Abraço,
MM

Sergio Mello disse...

E aí, Nilo? Quando aparece pra puxar uns Aldir Blanc no bar? Abração. Sergio Mello.

Nilo Oliveira disse...

fala, sergiomello! beleza? estou meio encalhado por aqui. mas, quando der, encheremos a cara depois de assistir uma peça de sua lavra. grande abraço.

Pierre Masato disse...

Meu Caro,
Grande notícia o Sr. aqui na internet.
Saudades das nossas madrugadas etilicas.
Forte Abraço do Vosso Admirador,

Nilo Oliveira disse...

E aí, monsieur masatô? Beleza? Ontem tentei avisar a ti e a mme. Vignon do meu blog, mas não consegui postar o coment. Também sempre visito a página de vocês. As saudades são recíprocas. Grande abraço.

Anônimo disse...

Fala Nilão
Puta blog bacana mano velho. Pinta lá no seu posto no sebo do Bac quando puder.
abração
Bac

Nilo Oliveira disse...

Bac, meu velho, como estão as coisas? Já abriste uma franquia do sebo? Estou empacado nesta ilha, mas assim que der, é claro que apareço por aí. Porque tu sabes, não é? São Paulo pra mim é aquele pedacinho de terra em torno do sebo do Bac. Grande abraço.

zema ribeiro disse...

cheguei aqui via marcelo montenegro, a quem agradeço conhecer/descobrir mais este talento. vejo, pelo post de estreia, que não há muita diferença, tirando o frio, é claro, entre florianópolis e a ilha que nasci-habito, são luís do maranhão. grande abraço!

Nilo Oliveira disse...

Como diz o Marcelo Mirisola, o problema do Brasil é que o litoral é imenso... Valeu, Zema.Abraço.

Anônimo disse...

Fala carinha! Gostei do Blog! Me diverti bastante com os textos e gostei da tua forma de escrever, parabéns! Abraço em todos por aí, T+! :D
Daniel Piantá.

Nilo Oliveira disse...

Valeu, subaquático primo. Beijo pra todo povo aí do Jambalaia. Grande abraço.

Anônimo disse...

Morro e não vejo tudo...
O Nilo com blog ???
Só falta agora dançar balé e fazer dieta...
Final dos Tempos... Apocalipse...

Guga

Nilo Oliveira disse...

Dieta, nem fudendo. Agora, balé... Grande abraço, velhinho.