segunda-feira, 28 de dezembro de 2009


Bukowski: DEFININDO A MAGIA*





um bom poema é como uma cerveja gelada
quando você está mais a fim,
um bom poema é um sanduíche de presunto, quando você está
faminto,
um bom poema é uma arma quando
os bandidos te cercam,
um bom poema é algo que
te permite andar pelas ruas
da morte,
um bom poema pode fazer a morte
derreter feito manteiga,
um bom poema pode enquadrar a agonia e
pendurá-la na parede,
um bom poema pode fazer seu pé tocar
a China,
um bom poema pode fazer você cumprimentar
Mozart,
um bom poema permite você competir
com o diabo
e ganhar,
um bom poema pode quase tudo,
isso sem dizer que
um bom poema sabe quando
parar.


* Roubado com foto e tudo do blog do Rodrigo Garcia Lopes. A tradução também é dele.

sábado, 19 de dezembro de 2009



Mirisola


- Gostou desse livro? Fui eu que fiz!

A figura demente, alucinada. Eu saindo do banheiro, com o livro debaixo do braço: quando o João falou que ia comprá-lo, desaconselhei:

- Porra, João, desses caras novos, tem muito pouca coisa que preste.

- Acho que este é bom. O próprio escritor me vendeu.

- Ele tá aqui, é? Como é que ele é?

- Gente boa. Meio maluco.

Um congresso reichiano, na praia dos Ingleses, em 1997. Num "hotel jeca de frente para o mar" - o escritor havia montado seu estande. Pelas paredes, recortes de jornais elogiando o livro: Aldir Blanc, Reinaldo Moraes, Marcelo Coelho - todos dizendo tratar-se de uma grande estréia. Mas não chegaram a me convencer. Até que a cervejada da noite anterior me obrigou a visitar, urgentemente, o Water Close:

- Empresta o livro, João. Preciso me inspirar.

Abri, como sempre faço, no conto que dava título ao livro, que começa assim: "Conheci Maria de Fátima. Descasada, mãe do gordinho de doze anos, quando se tem doze anos, as mães chamam-se Maria de Fátima. Os filhos têm doze anos e são gordinhos. É por aí que as coisas acontecem. Eu ficava no quarto dos meninos. Beliches Lembram Pastéis Fritos Em Óleo Vagabundo" - e a coisa prosseguia na base do "Dancing Days" e das "camisas Hang-Ten", "Paulo César Peréio era o tipo que fazia a festa. Os anos setenta foram uma merda" - minha geração desgraçada finalmente traduzida em literatura. E que literatura...

Só consegui desovar os petiscos e a cerveja da noite anterior depois de ler o conto. O João entrou no banheiro e gritou pra dentro do reservado: "E aí? Que tal o livro?"

- Caralho, Joãosinho... O cara é bom!

- É? E tu tá podre!

Na saída, conheci o escritor ("Gostou desse livro?"). O nome da obra era "Fátima Fez os Pés Para Mostrar na Choperia" - e, naquela tarde, eu, João e Mirisola, num barzinho na beira da praia, derrubamos um engradado e meio de cervejas.

O papo seguiu noite à dentro. Nunca mais vi o Mirisola beber daquele jeito. Também nunca tinha visto um sujeito mentir tanto e de forma tão divertida. A partir daí, nos tornamos grandes amigos. Ele estava há três meses isolado na sua casa do Santinho, em cima de um morro de difícil acesso, sem rádio nem televisão. Não havia diferença entre o que eu acabara de ler e o cara sentado a minha frente. Alucinado, falando aos berros, numa voz esganiçada: "De vez em quando dá vontade de puxar Deus pelos cabelos do cu, espetar o dedo no nariz dele e perguntar: qual é a tua?" - literatura de altíssima qualidade, em estado bruto, de camisa pólo, bermuda de tenista e chinelões Rider tala-larga.

Na época eu tinha várias prevenções contra os chamados "círculos literários". Só conhecia - mais pela mídia do que pessoalmente - dois tipos de escritores: os herdeiros dos Irmãos Campos (ou Masturbadores do Vernáculo) e os perseguidores do Bukowski (ou Beats Candangos). Não me sentia muito a vontade em relação a nenhum dos dois grupos.

Os primeiros pelo óbvio excesso de simióticas, latinismos e rodapés. Os outros, pela forçada "cara de mau", a tal da "cultura pop" utilizada como griffe pra justificar descaradas picaretagens, a mania pré-adolescente de sair no braço por qualquer merda - as drogas, o álcool e as noites sem rumo como uma tentativa anacrônica e ilusória de adquirirem alguma espécie de talento, via detonação do próprio fígado. Como diria o Nei Lisboa, todos eles - semióticos e adictos - querendo parecer sinceros demais.

Ali na minha frente, portanto, em plena praia dos Ingleses, estava um escritor talentoso - mas sem os achaques e frescuras que eu achava sempre acompanharem os supostos talentos. (Depois, já meio que enfronhado nos tais "círculos", acabei fazendo grandes amigos. Mas uma coisa acabou se confirmando: quanto mais afetado o sujeito, quanto mais faz questão de ostentar erudições ou franzir a carranca "maldita", menos talento ele tem.)

Foram quatro anos de convivência quase diária. Que fez um bem danado pra mim e pro livro que eu estava escrevendo. Putas de jornal, ruazinhas do centro antigo de Floripa - o "Vitória Bar", na esquina da Conselheiro Mafra com a Padre Roma - paletas de ovelha ocasionalmente fumegando na churrasqueira do Santinho e grandes porres de vinho vagabundo. Muitas histórias: um sonho em comum com o Vinícius de Moraes que, por várias razões, me abstenho de relatar por aqui - principalmente porque, segundo um dos mais valiosos conselhos do Mirisola "escritor que é escritor não dá colher de chá pro inconsciente nem pro sobrenatural."

Quando, algumas semanas após nos conhecermos, li os originais do seu segundo livro - uma novela chamada "Teresa Para Amanhã" - e disse que não fazia jus ao "Fátima", o Mirisola deu um berro, passou a mão no calhamaço de folhas batidas a máquina (duras de "Errorex") e azulou, resmungando pra si mesmo um rosário de blasfêmias e palavrões. Reapareceu três dias depois, com grandes olheiras, dizendo que passara o fim de semana à base da salsicha e do Miojo - e me entregou outro calhamaço com as mesmas características.

Tratava-se, desta vez, de um volume de contos. Chamava-se "O Herói Devolvido" - e, como se diz por aí, o resto é história.

Coragem e talento são coisas que ninguém ensina, e nem se pode aprender de uma hora pra outra. Mas, pelo menos no que se refere ao vício da escrita - pra que não descambe na banalidade da loucura, no impulso suicida ou no alcoolismo puro e simples - precisam ser de alguma forma moldados, canalizados, pra que encontrem algum tipo de norte (quem se mete a escrever, tem que primeiro inventar para si uma espécie demente de bússola - do tipo em que os nortes possam ser cambiados segundo as variações do humor ou da necessidade. O que importa é a originalidade do instrumento - além, é claro, da destreza de quem o maneja.)

Mais que a literatura inerente, essa longa e fraterna convivência foi fundamental pra que eu encontrasse aquilo que alguns chamam de "voz" - uma "postura", uma certa maneira de traduzir e se relacionar com as próprias "inhacas" e com as "inhacas" do mundo, a qual o próprio Mirisola denominou, no prefácio do meu livro, de "Ética do Foda-se". Uma rara e imprescindível lição de estilo.

Como já disse, as histórias são muitas. E cada uma delas, sozinha, daria um post.

Tudo isto pra dizer que este meu irmão paulistano está com um novo livro de contos na praça. Chama-se "Memórias da Sauna Finlandesa" e pode ser adquirido pelo site da Editora 34. Li as primeiras versões e garanto que vale a pena. Assim como todos os outros.



* A foto no início do post é do meu amigo e poeta nipo-franco-paulistano Pierre Masato, via Obturador.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009


Figurinhas


"Uma vez tive um orgasmo, mas meu psicanalista disse que foi do tipo errado", do Woody Allen, em "Manhattan". "Se Deus não queria que a gente comesse os animais, então porque Ele os fez de carne?", do Homer Simpson. "Sem alma não se chupa nem um Chicabon", do Nelson Rodrigues - e esta outra, também dele, que deveria ser um norte na vida de muita gente do tipo "cabeça", principalmente publicitários, cineastas e letristas da MPB: "Sejam burros!"

Alguns exemplos de frases que sempre me obrigam a rir, por mais velhas que sejam. Melhor ainda quando são histórias e frases de figurinhas conhecidas, que a gente teve a sorte de topar pelo caminho - quase sempre, no meu caso, em mesas de bar.


Como, por exemplo, estas duas do Eduardo "Coelho" - o Woody Allen do Alegrete - que fariam parte de qualquer antologia de humor.

Durante um exame, o médico perguntou pro Coelho:

- Como está sua vida sexual?

- E isso é vida? - devolveu o Coelho, de orelhas murchas. (Não é piada, juro. Quem duvida, é porque não conhece o Coelho.)

Noutra ocasião, um amigo ligou pra ele, todo emocionado:

- Porra, cara, o Astor Piazzolla acabou de sofrer um derrame. Parece que ficou com o lado esquerdo do corpo paralizado...

E o Coelho, pegando de prima:

- Agora quero ver se ele é bom mesmo.

Ouvir histórias do tipo é uma das melhores coisas nestes lugares de tantas coisas melhores (e algumas piores) que são as mesas de bar.

Vou deixar aqui a última - desta primeira leva, é bom que se diga - que o meu amigo Rafinha me contou noite destas.

Ele e mais dois amigos sentados num sofá, de ressaca, vendo TV. Um deles, pra lá de goiaba (é assim que chamam aqui em Floripa os sujeitos que acharam de cozer o próprio cérebro em substâncias lícitas e ilícitas. Todo mundo conhece um ou dois. Se quem estiver lendo não for o próprio, lógico.) De repente, num programa de auditório, aparece aquela modelo, a Fernanda Tavares:

- Olha! - diz o goiaba - A Roberta Close!

Os outros, acostumados, nem se olham.

- Não, cara, essa é outra. Uma modelinho nova aí. A Roberta Close é muito mais velha.

- Ah, tá... - diz ele, voltando a se encostar no sofá.

Depois de dois ou três minutos, novo insight:

- Mas então ela é a filha da Roberta Close!

Agora os dois são obrigados a se olhar. Meio que rindo, um deles explica, cheio de paciência:

- A Roberta Close não pode ter filho. A operação, lembra?

- Não pode?

- Não.

- Ah, tá...

Os três voltam a submergir num profundo e reflexivo silêncio. Até que, depois de mais alguns minutos, o goiaba abre os braços e berra, desesperado:

- Mas então quem é esta filha da puta?!?

domingo, 29 de novembro de 2009


J.Bosco/ A.Blanc: Querido Diário


Confesso, querido diário,
Essa mulher me convulsiona
O ar de mártir no calvário
Em meio à bacanal romana


Garanto, querido diário,
Que atrás da leve hipocondria
Convive a hóstia de um sacrário
Com o fogo da ninfomania

Hoje acordei
Tomei café
Me masturbei
Comprei jornal
Fiz a fé no bicho
Pichei o governo
Me senti quadrado
Fui ao analista
Cantei "Babaloo"
Mais fora de esquadro
Do que esquerdista
No Grajaú


E o tempo todo, meu diário,
Pensava nela com amargura
O arquipélago das sardas
Nas costas nuas, que loucura


Constato, querido diário:
Muito pior do que perdê-la
É encontrá-la pelas ruas
Dizer: “Olá, prazer em vê-la...”



*


"De todos os bebuns que a gente encontra por aí, metade bebe porque não têm mulher... E a outra metade, porque têm."


Barão de Itararé



sábado, 28 de novembro de 2009


Poema Encontrado Dentro de uma Garrafa


Depois de muito tempo, entrei no velho bar.
Cada vez mais esta cidade me expulsa.
Fui embora cedo
expulso pelo parto reverso
- a bolsa pra lá de estourada -
dos fetos que se espremiam lá dentro.

Quando saí
a moça da portaria me disse: “Já vais embora?
Ainda nem ficaste chato!”
Podia ter respondido: “Nunca sou chato
apenas quando bebo
fico fora do teu alcance
e é por isto que bebo”.

A moça da portaria tem um sorriso bonito.
As moças são cada vez mais bonitas
a medida em que a gente envelhece.
O problema é que nesta cidade elas se repetem
em cada idade
como se fossem a mesma.

A cidade me expulsa
como uma onda
expulsa um destroço.

Este mar de província
raso
previsível
na calmaria ou na fúria.

(Por um motivo obscuro
todo homem procura o milagre.
E pelo mesmo mistério
um dia desiste de procurá-lo.)

Não há mais aventura possível
em frente a este mar.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009



Diálogos Libertinos com a Senhora H.

Todo mundo que ia visitá-la na Casa do Sol - o sítio em que morava sozinha, entre livros e cachorros, perto de Campinas - saía de lá com uma história. Com quase oitenta anos, já apitando na curva, não tinha mais saco pra medir palavras. O meu amigo Ricardo Lísias esteve lá e me contou que, ao sair, pediu pra que ela autografasse um livro:

- E o que escrevo? - ela perguntou.

- Escreve "para o Ricardo Lísias, com amor".

Virando-se pra ele, de olhos arregalados mas com um sorriso sacana, ela disse:

- Mas, meu filho, assim vão pensar que estamos fodendo!

Em outra ocasião, recebeu a visita de umas alunas do curso de letras da PUC. Tinha acabado de lançar "O Caderno Rosa de Lori Lamby", e o teor "pornográfico" do livro havia escandalizado muitos acadêmicos da época. Uma das alunas, visivelmente constrangida, perguntou:

- Dona Hilda, a senhora não tem medo que confundam sua obra com a vida real?

- Querida - respondeu, bebericando uma xícara de chá - no meu tempo eu era muito puta...

Já no fim da vida, um livro seu foi premiado com uma viagem a Paris. Recusou a viagem e pediu sua parte em dinheiro, com um argumento irrefutável: "Não posso beber, não posso passear, não posso trepar. O que é que eu vou fazer em Paris?"

Muito bonita na juventude - e muito "avançada" para o seu tempo - namorou caras como Dean Martin e Vinícius de Moraes. Quando numa entrevista perguntaram, em tom de fofoca, sobre seu caso com Vinícius, encerrou o assunto dizendo:

- Mas naquela época quem o Vinícius não comeu?

Hilda Hilst não era apenas isso. Era muito mais. Sem dúvida, uma das maiores escritoras que o Brasil já teve. Sempre recorro a ela quando preciso tirar o chão das coisas que escrevo. Mas como este blog tem uma pequena queda pela sacanagem, optei por apresentar apenas este lado. Na minha opinião, tão importante quanto todos os outros.


"Cartas de um Sedutor"

Cordélia, irmã, sai do teu claustro.
O campo envelhece vacas e mulheres.
Alimenta de novo teus buracos
Com mastruços gentis, nervosas picas
Ou se conas quiseres para tua língua
Consigo-te às dezenas: conas maduras
Conas juvenis, conas purpúreas
Para teus represados sentimentos vis.

Foste antanho putíssima, celebérrima.
Talvez senhora por alguns parcos segundos.
Mas agora me vejo furibundo pois suspeito
Que fisgaste o paterno caralho
Nos teus buracos fundos. Traidora. Megera.
Amada Musa ainda. Hei de te arrebentar as rebembelas.

Retornarás mui breve à vida impura
Pois se há no mundo picas e querelas
A respeito de tudo, ah, Palomita, vem...
Aqui te espera um valhacouto imundo.


*

"Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
Objeto de amor, atenta e bela.

Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)

Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel

Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra."

* * * * * *

E o Mirisola volta a exorcisar - segundo ele pela última vez - os pastores meganhas. Nunca é demais falar contra este povo. Para ler a crônica, clique aqui.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009


O Caminho e o Contrário



Por ocasião do lançamento de suas obras completas, escreveu Borges no prólogo do seu livro de estréia, “Fervor de Buenos Aires”, publicado quando ele tinha 22 anos: “Naquele tempo, procurava os entardeceres, os arrabaldes e a desdita; agora, as manhãs, o centro e a serenidade”.


O poema abaixo, do português José Régio, faz parte da minha adolescência. Quando ainda acreditava que a falta de medida e a loucura, por si sós, eram condições indissociáveis ao talento ou a qualquer tipo de pretensão literária ou artística. Em nome disto – intoxicado de música e literatura – cometi todas as cagadas necessárias pra poder olhar pra trás sem grandes nostalgias ou arrependimentos (um ou dois, na verdade... E sempre por excesso).


Hoje a transgressão virou regra. Sair pelas madrugadas em alta velocidade quebrando bares, enchendo a cara e cheirando pó virou um ritual que todo adolescente – pra ser considerado “normal” – é quase que obrigado a cumprir. A classe média descobriu os clubes de swing, o ex-Primeiro Ministro britânico toca guitarra e o presidente da França é casado com uma groupie. A única herança que restou quase intacta da chamada “mentalidade burguesa” – a qual, inspirados por nossos ídolos, combatíamos com unhas e dentes (apesar da maioria de nós ter nascido dentro dela) – é a tal da “mentalidade empresarial”.


Não é pouca coisa, reconheço. O problema é que o inimigo tomou quase todas as armas com as quais pelo menos três gerações aprenderam a lutar. E como se não bastasse, as revende a preços exorbitantes, e numa embalagem "bem transada" (ainda se fala isso?), aos novos iludidos, que ainda insistem em posar de transgressores, outsiders, “malditos” & afins.


Conheço bem o jogo. Eu e ele nascemos quase juntos, na mesma época. Também, no meu tempo, cheguei a comprar muito gato por lebre.


De modo que o poema, em essência, continua atual. O que está cada vez mais difícil de saber é pra que lado fica o tal caminho contrário. Pra mim já é tarde: não tenho mais saco de procurá-lo. Me restaria, portanto, fazer coro com Borges.


O diabo é que não consigo. De jeito nenhum.



José Régio: Cântico Negro


”Vem por aqui” - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

quarta-feira, 4 de novembro de 2009


ao meu pai.



deslizo da cama

desço à calçada

e só lá embaixo percebo

que esqueci os sapatos


as meias logo se encharcam

da chuva recente

e um sentimento sem nome

me obriga a continuar


visito mercados

botecos

lojas de conveniência

e logo saio

sem pedir nada


sinto a sujeira

grossa

de toda a cidade

endurecendo nas solas

as pontinhas geladas

do asfalto

ao atravessar cada rua

até que os cascalhos e a grama

de um parque da infância

me mostram que é outra cidade

que o tempo é outro

anterior a mim mesmo

e começo chorar

pela certeza de que vou encontrá-lo

a certeza absoluta

de que vou encontrá-lo

como no tempo

em que estava vivo.


quinta-feira, 15 de outubro de 2009


1960 - 1970:
Sexo, Drogas & Rock´n´roll

+

+

+

1980 - 2010... 11... 12...
AIDS, Narcotráfico & Disney Channel

terça-feira, 6 de outubro de 2009



Necrófila Disney



Na entrada de cada cemitério – um cardápio de presuntos ilustres.


Em Montparnasse, Sartre, Beauvoir, Becket, Baudelaire, Cortázar, Maupassant, Serge Gainsbourg, entre outros. No Père Lachaise, Balzac, Wilde, Delacroix, Chopin, Proust, Piaf, Kardec, Camus e outros milhares de defuntos anônimos, que tentam descansar em paz – apesar dos turistas, suas máquinas digitais e seus gritos de júbilo, cada vez que encontram, estampado na pedra, o nome desgastado do ídolo.


Embaixo do nome – duas datas. As únicas que realmente têm alguma relevância pro indivíduo enterrado ali embaixo.


Lápides góticas, escuras e tortas. Cerquinhas de ferro com grades em forma de lança. Flores rotas, apodrecidas. Os corvos estão por toda parte, aos pulos, em vôos curtos e rasantes, pontuando o silêncio com som rasgado dos seus gritos.




Nas copas das árvores, espalhadas pelo chão, navegando pelo ar num movimento preguiçoso – em contraste com o cinza envelhecido dos anjos, das cruzes e do céu de outono – as folhas das castanheiras emprestam à paisagem uma cor amarelo-enrubescida de pêssegos maduros. A cada passo, produzem o som crocante de ossinhos triturados, de terra úmida mastigada entre os dentes.


Dobro à direita na primeira alameda do Père Lachaise, em busca dos túmulos de Abelardo (1079- 1142) e Heloísa (1101-1164).


Os defuntos que estão enterrados por aqui são fudidos. Ás vezes chegam a ter - só de morte - o dobro do tempo de existência do teu país de origem.


Os amantes estavam lá, enterrados um ao lado do outro, juntos, finalmente - o que serve de consolo muito mais para os espíritos românticos que os visitam do que pra Abelardo, Heloísa, o filho do seu amor bastardo (também enterrado ali, junto aos pais) ou a qualquer um dos envolvidos na trágica história.


(Quem não souber quem são Abelardo e Heloísa, procure no Google. Vale a pena).


De repente me vejo sozinho numa alameda suja e estreita: tenho que cuidar pra não pisar nas lápides - em alguns pontos, meus ombros chegam a roçar nas construções de mármore e granito.


A temperatura despenca.


Sinto um calafrio subir pela espinha e me arrepiar os cabelos da nuca.


Dizem os entendidos nas coisas do além que estes são sinais de que algum fenômeno paranormal se encontra em decurso. Como não acredito em gente viva que se autoproclame especialista em coisas do além, sigo tranqüilo - mas fazendo o possível pra chegar o quanto antes na alameda principal.


Alguns passos a frente, parado diante de um mausoléu, vejo um senhor baixinho, atarracado. Veste um sobretudo de cor escura e usa um chapéu coco, enterrado na testa.


Quando me aproximo, ele me olha de canto. Posso ver seus bigodes grisalhos, com as pontas viradas pra cima – e, assustado, some lá dentro.



Passo reto. Nem olho pro lado.


Vai saber.


Uma coisa é se entediar com o clichê quando sentado na poltrona do cinema. Outra coisa é – na vida real – tentar ligar o carro enquanto, pelo retrovisor, o psicopata se aproxima.


No fundo do cemitério, o muro onde fuzilaram 174 líderes da Comuna de Paris, ainda esburacado de balas.


Diante do busto de Allan Kardec, um grupo consternado de vivos e mortos ora, num silêncio respeitoso.


O granito do túmulo do Oscar Wilde cravejado de marcas de batom: viados do mundo inteiro acharam de homenagear assim o seu mártir.


A idolatria abjeta diante dos restos do Jim Morrisson.


Muito mais comoventes são os mortos anônimos: em lápides de diversas épocas – 1790, 1880, 1917, 1942 – em alto relevo, a mesma incrição: “Mort pour la France”.


Em algumas delas, várias datas de nascimento e apenas uma data de morte: a peste, os bombardeios, os fuzilamentos coletivos dos participantes da resistência – há mais de dois mil anos que esta terra serve de laboratório pra essa oficina de fabricar mortalhas a qual, ironicamente, chamamos civilização. E tudo vem desaguar aqui, neste grande olho de água parada, onde a coragem e a covardia, o talento e a mediocridade se decompõem lado a lado – a sensação incômoda de que, a qualquer momento, um braço da história vai brotar do chão e me agarrar pelo tornozelo.

Não tirei muitas fotografias. Fiquei constrangido pelos novos mortos e por seus familiares, que de vez em quando passavam em cortejo, de óculos escuros, com suas braçadas de flores e a cara fechada do luto.


Em Montparnasse, depois de visitar Becket, Baudelaire e Cortazar – motivado por uma espécie de vingança mórbida – saí em busca do túmulo do Cioran.


Seria divertido ver o cara que disse ser a notoriedade a pior coisa que pode acontecer a um escritor cercado de flores e despachos (em Paris, eles têm o costume de enfeitar os túmulos com pedrinhas e conchas, formando corações, setas, palavras e outros símbolos de dor, admiração ou saudade): iria descontar no filósofo da Transilvânia todos os encostos literários e filosóficos que me assombraram durante a vida inteira.


Máquina em punho e olhar de perdigueiro, anotei o endereço (div. 6 – tobeau 73) e andei uns vinte minutos por entre as alamedas, sob um frio de rachar; procurava, como pistas, o aglomero, os cacarejos e o espocar dos flashs.


O costumeiro parlamento dos corvos (eles estão por toda a cidade, como pombos domésticos. Parecem saber que, por aqui, de tempos em tempos o rango é farto) – as janelas antigas dos prédios em torno, como um prolongamento da paisagem de mausoléus e capelas.


A principal diferença do Cimetière du Montparnasse para o Pére Lachaise é o humor de alguns túmulos: esculturas imitando fantasmas saindo do chão, bustos representando o defunto dando uma gargalhada. Até a escultura de um gato, ornado com um mosaico de pedras coloridas, havia por lá.


Finalmente encontrei o que estava procurando: no início, intrigado, tive que dar várias voltas em torno do retângulo de mármore, até ter certeza de que estava no lugar certo.


Não pude conter a gargalhada: mesmo depois de morto, o velho Cioran tinha me dado uma rasteira.


Não havia ninguém em volta a lhe prestar homenagens. Nenhuma foto, nenhuma inscrição, nenhum nome, nenhum ornamento – nada.


Seu túmulo se resumia a um bloco retangular de mármore negro, a rés do chão. E as únicas inscrições que tinham nele eram, escondidas na parte de trás, o endereço da campa - e a data solitária da sua morte.