terça-feira, 31 de agosto de 2010




Publico, abaixo, um texto inédito do meu amigo Marcelo Mirisola.

Especialista em cutucar feridas próprias e alheias, com um faro sem igual para engodos travestidos de jornalismo ou literatura, o Mirisola tem desagradado muita gente "boa" nos últimos tempos. Apesar de escrever semanalmente no site "Congresso em Foco" gozando de uma liberdade que, até então, não havia experimentado em nenhum outro veículo (segundo ele mesmo me disse quando esteve por aqui), parece que desta vez o pessoal achou algum problema nessa última crônica que a tornou impublicável. Leiam e tirem suas conclusões.

Na sequência do "proibidão", um brinde luxuoso: o seu "Monólogo da Velha Apresentadora", praticamente na íntegra.


Escárnio

Infelizmente não consegui publicar esse texto no Congresso em Foco, e quero agradecer ao Nilo pelo espaço cedido aqui, no De Costas pro Mar.

Aos fatos. A Folha de São Paulo cometeu uma grosseria contra a biografia de Alberto Guzik (ilustrada 21/8). Gustavo Fioratti foi o responsável por reverberar o jornalismo crasso e deletério de Mônica Bérgamo. Para quem não lembra, a coluna dessa senhora cobriu a estréia de minha peça e não me citou. Na oportunidade, reclamei para o Ombudsman, mandei carta para o Painel do Leitor, e não adiantou nada. Ficou por isso mesmo. O jornal simplesmente resolveu apagar o Monólogo da Velha Apresentadora, texto de minha autoria, da biografia de Alberto Guzik.

Como sou ingênuo voltei a reclamar. Não por mim, que estou acostumado a engolir esse tipo de veneno, mas pela memória de Alberto Guzik. Via Ombudsman, recebi a resposta de Sylvia Colombo, editora da Ilustrada.

Nada mais nada menos que uma confissão de arrogância e uma declaração de escárnio, aspas: “O dramaturgo Alberto Guzik deixou obra vasta e variada. Não foi possível incluir todos os trabalhos na arte raixo x – publicado junto à matéria.”

Notem que não foi o repórter Gustavo Fioratti quem respondeu, mas Mônica Bérgamo, editora da Ilustrada. Isso revela uma opção deliberada do jornal por aquilo que a Igreja Romana da idade média chamava de índex, censura mesmo. Mal comparando, já que estamos falando de métodos medievais de exclusão, seria como não incluir o papado na vida do cardeal Ratzinger. Dessa vez, porém, até a Ombudsman me deu razão (por email porque não se manifestou publicamente) e disse que era injustificável excluir o Monólogo da Velha Apresentadora da biografia de Guzik. Evoluímos?

Se a Folha de São Paulo optou pelo índex, claro que não. O fato é que ignorar essa peça é subestimar todo o percurso de Guzik como homem de teatro. Será que é tão difícil de entender? Uma trajetória que culminou nesse espetáculo, que o realizou como ator e fechou o ciclo de sua vida. Há testemunhas. Muitas.

Até quando a Folha de São Paulo, levada pelo senso medieval de retaliação de seus editores, vai cometer a grosseria de omitir o Monólogo da Velha da biografia de Guzik? O que eu poderia fazer para provar a existência da Velha Apresentadora para aqueles que acreditam no jornalismo praticado pela Folha de São Paulo?

Em primeiro lugar, creio que é conveniente publicar o texto aqui no blogue do Nilo. Depois, sugiro o blogue do próprio Guzik.

O material é farto. A partir da estréia da peça, no dia 11 de fevereiro e ao longo de 2009, Alberto Guzik documentou quase que diariamente sua experiência na pele da Velha Apresentadora. São toneladas de informações, verdadeiras aulas de dramaturgia em torno do assunto, comentários e participação dos amigos e espectadores de sua vida e obra. Alguns, nem tão próximos, se manifestaram e foram solidários comigo. Outros silenciam e fazem coro a omissão da Folha, como se aniquilassem parte da memória que Guzik confiou a eles. Eu sinceramente não queria estar no couro nem na alma dessas pessoas.

Nessa mensagem, postada em 14 de fevereiro de 2009, Guzik comenta a grosseria de Mônica Bergamo (que, repito, não foi corrigida e que – parece – fez escola na Folha):

o aborrecimento de mirisola

o grande mirisola escreveu pra se queixar: nas legendas das fotos na coluna da monica bérgamo, na sexta, que tanto me agradaram, em nenhum momento apareceu registrado que o "monólogo da velha apresentadora" é uma obra (genial, por sinal) de marcelo mirisola. ele disse que ficou parecendo que era texto de um fantasma, de um ectoplasma. total razão tem ele. foi uma deselegância dessa coluna em geral tão elegante, precisa e correta. não sei a que atribuir. mas mirisola se sentiu bem aborrecido. e está coberto de razão. sem sua obra nenhuma daquelas pessoas das fotos estaria lá. éissaí.

E põe deselegância nisso, Guzik. Reclamei e não adiantou nada. Depois que você morreu, o jornal voltou a ignorar não somente a mim, mas nossa Velha também, e o que era deselegância virou escárnio e desrespeito com sua memória. Como eu disse, são toneladas de informações.

Enfim. Se vocês acreditam que a história de um homem como Alberto Guzik é maior que a conveniência de uma meia dúzia de canalhas tacanhos que têm compromissos apenas com as próprias mesquinharias, então – repito – vale a pena dar uma conferida no blogue dele: http://os.dias.e.as.horas.zip.net/

Não obstante e apesar de todas as omissões e grosserias, tenho uma boa noticia. Em 2011, a Velha Apresentadora voltará aos palcos. Dessa vez, encarnada no incomparável Marcio Américo, ator e também autor de um livro que é uma obra-prima, Meninos de Kichute.

Na seqüência, para quem não acredita nos fatos e acha que o jornalismo da Folha é imparcial, faço questão de publicar o Monólogo da Velha Apresentadora, ainda sem a inclusão do personagem vivido por Chico Ribas, “o ponto”.

***

Monólogo da Velha Apresentadora

Febe Camacho no Camarim. Fuma compulsivamente, e bebe um copão de Gim. Transtornada com a notícia que acaba de receber

FEBE:

Filha da puta de negrinha! Tinha que ser seqüestrada... era o que me faltava! Onde é que vamos parar? Faz cinqüenta anos que entrei nessa merda de televisão. Nem na época da esculhambação do Jango aconteceu um absurdo desses! Antigamente as pessoas tinham talento! Era tudo precário, improvisado... mas tinham talento! Eu era jovem, bonita... recém-casada com aquele pústula do Silveira... Ah, J.J Silveira! O grande filho da puta... chantagista, escroque. Ele entrou nessa história por causa de uma troca de favores. Isso mesmo! Eu lembro: naquela época as pessoas trocavam favores, e obtinham algo em troca! Simples, simples ... Tudo bem, eram podres. Mas tinham uma ética, minha Nossa Senhora! Silveira mesmo, apesar de ser um canalha, nunca me faltou com o respeito. Lembro como se fosse hoje: na ocasião em que foi pego com a boca na botija, conseguiu manter a classe. Abafou o caso.

Naquela época, 1950, 51, no Rio de Janeiro, todas as senhoras e senhoritas que trabalhavam no meio teatral, tanto faz se fosse teatro sério ou rebolado, recebiam cartas e telefonemas de um sujeito muito polido e enigmático, que pedia en-ca-re-ci-da-men-te para que elas deixassem para ele, na portaria do teatro, sapatos velhos, de preferência de saltos bem altos e de cor marrom. Adivinha quem era o tarado?

Quem podia ser? Pego, Silveira teve de negociar, pois na época trabalhava no gabinete do dr. Lacerda. Fez tudo na surdina, e ficou por isso mesmo.

Ah, minha Santa Rita... tarado era tarado, ladrão roubava gente rica! Não acredito que seqüestraram minha empregada! Merda! Vai atrasar tudo... tive que cancelar a manicure para negociar a libertação da infeliz... (imita a empregada) “Ai, dona Febe eles me pegaram”. Que se foda, eu falei pros seqüestradores... quero que essa infeliz morra! Adiantou alguma coisa? Nada, os marginais disseram que iam ligar pra central de jornalismo da emissora, e que iam me denunciar por falta de sensibilidade social. Caralho! Sensibilidade social? Por causa dessa merda, chegamos onde chegamos. Na minha época tínhamos ética, talento. Quando entrevistei Cartola – se não me falha a memória... em 1972 – ele sabia que era um lavador de carros, sabia que era um ne-gro, e sabia principalmente qual era o lugar dele. Foi por isso que fez as músicas que fez... Hoje? A gente é obrigada a dar colher de chá para esses maloqueiros, tratá-los como se fossem gente – tem que dizer que a carapinha deles é linda – e o que ganhamos em troca? (Imita o seqüestrador) “A senhora não tem sensibilidade social”.

Ora, como não? Essa infeliz tem carteira assinada, décimo terceiro salário, come a mesma comida que eu como, viaja para Campos de Jordão no mesmo carro que a Tatá, minha Poodle... Viaja e não gasta um centavo do próprio bolso, a gente paga!, e trata como se fosse de casa , e o filho da puta vem me dizer que eu não tenho sensibilidade social? E o carnê das criancinhas Aidéticas? Não deixei de pagar uma prestação!... Também tem o carnê dos velhinhos cegos, ou é o carnê dos aleijados?

Nem sei, é aleijado, é cego, é carnê pra casa do câncer, prestação pra casa do caralho... o que mais que esses merdas querem? Vão tomar no cu!

A minha vida inteira foi feita de sacrifícios! Até hoje, depois de tudo e de desfrutar da amizade pessoal do doutor $$, o dono dessa birosca aqui, ainda tenho que me sacrificar! Será que esses merdas de seqüestradores sabem que meu salário foi reduzido pela me-ta-de por causa dessa maldita crise? Eu aceitei, não aceitei? Estou aqui, não estou? Se precisar eu rebolo até dentro do caixão! Como fiz a vida inteira!

Tive que rebolar muito pra chegar onde cheguei. Agüentei o nojento do Silveira por trinta anos, ele suas taras e suas amantes. As meninas de hoje falam em “orgasmos”... eu lembro que vomitava muito depois de ir pra cama com o Silveira. Não foi fácil, porra! Quando cheguei em São Paulo me humilhei feito uma cadela... Mas eu era uma cadela. E sabia disso, essa que é a diferença! Também fui empregadinha! Trabalhei de copeira na mansão dos Mamacazzo... O máximo que podia acontecer – e foi o que aconteceu, porra! – era o Conde querer me comer. E eu dei pra ele, e daí? Aquele homem era de uma generosidade ímpar! Me usou, usou sim, e recomendou para os amigos dele, passei de mão em mão até conhecer o Silveira. O canalha do J.J.Silveira. Mas eu sabia qual era o meu lugar, e tinha um vozeirão e um corpo lindos. Minha Nossa Senhora! Vá lá, eu era jovem, bonita... ainda não tinha essa cara de peixe retorcido por causa das dezessete plásticas que fiz em quarenta anos... ou vinte e sete plásticas em cinqüenta anos? Sei lá porra! Eu era bonita, mas tive que rebolar. Nunca desisti do meu sonho. Graças a generosidade do Conde, embarquei para o Rio de Janeiro. No começo, as coisas não iam nada bem pro meu lado... apesar dos contatos que o Conde havia me passado, minha carreira não deslanchava... Comi o pão que o diabo amassou... pensei até – juro por Deus! – em dormir com negros para pagar o aluguel. Eu era uma menina, uma caipira. Mas eu lutei, lutei até que consegui ir ao programa do Ary Barroso... e fiquei entre os três melhores! O Ary era foda, ou como diziam naquela época “criterioso”, ele não dava moleza. Não tinha esse nhenhenhen de hoje... em primeiro lugar, a música tinha letra, falava de auroras, luares, estrelas... e depois havia os interpretes, Chico Alves, Dalva de Oliveira, e tantos outros, e havia os tenores , as grandes orquestras, o Cassino da Quitandinha e seus bailes memoráveis, era um tempo em que as mulheres eram damas e os homens cavalheiros... e os corsos no carnaval ?... Ah, nunca vou me esquecer do carnaval de 1952: Os pierrôs morriam pelo amor das colombinas... (canta): “o jardineira por que estás tão triste/ mas o que foi que aconteceu/ foi a camélia que caiu do galho/,deu dois suspiros e depois morreu... foi naquele ano, 1952, que conheci o Ademar. Saudoso Ademar (suspira): Um gentleman! Ai!... e que rola...

Huummm Hummmm (pigarreia e toma um gole de Gim).

Hoje até o clima está de pernas para o ar! Naquela época tínhamos as quatro estações do ano bem definidas, verão, primavera, outono e inverno. Agora virou bagunça: Uma atochadinha, vem cá minha safadinha (canta um funk e faz o gesto de trazer o quadril para frente e para trás): Dá uma atochadinha/ vem cá minha safadinha...

O que aconteceu com o mundo? Alguns anos depois da guerra, 1949ou 50... fui para o teatro rebolado... aí sim, fiz nome. Construí um nome! Tive generais,ministros e senadores aos meus pés.

Os seqüestradores daquela infeliz deviam saber disso. Todo mundo devia saber, porra!

Fui Eu, Euzinha, quem ensinou as maiores sacanagens para Virginia, a preferida do Dr. Getúlio. Muito antes de as francesas trazerem as “novidades”, eu já fazia por instin... - digo talento.

Naquela época – tirando o Silveira, esse era tarado e não conta - ninguém se atrevia: as mocinhas ruborizavam, havia muito pudor e respeito. Verdade que os cavalheiros subiam em cima da gente feito animais. Mas nos tratavam como damas. Davam lá meia dúzia de bombadas, e se aliviavam. E era só.

A arte de La bouche, por exemplo. A despeitada da Virginia aprendeu comigo... fui eu, Febe Camacho, quem a ensinou a... mer-gu-lhar no ta-ba-co. (simula uma chupada para platéia).

Como a ensinei? Ora, ora. No meu tabaco é que não foi! Muito menos no sex shop (pronuncía “sex-shop” enojada). Tínhamos imaginação, tempo livre e os vegetais da Xepa. Além disso, não tínhamos escolha. Precisava mais?

Glamour? Claro que sim, o glamour da sobrevivência. Era assim: movimentos circulares e espiralados, desde o campinho (com o maior respeito), passando pela base até chegar a explosão final do cogumelo... tudo, tim-tim por tim-tim. Ela aprendeu tudo comigo. Virginia, a ingrata, a melhor aluna: tão aplicada como despeitada, aprendeu e virou professora.

Aprendeu a engolir tudo. Fisgou dr. Getúlio – e não queria dividir com ninguém, queria só para ela, egoísta.

Geralmente era nas terças-feiras. Um Cadillac preto estacionava na frente do apartamento do Flamengo, e levava a biscate. O chofer pessoal do dr. Getúlio vinha apanhá-la e seguiam direto para Poços de Caldas. Uma vez só participei de uma festinha no Palace Hotel. Virginia me levou – é claro – porque foi obrigada.

Se não fosse por isso, hoje, o petróleo não seria nosso. Mas essa é uma outra história, coisa minha e do doutor Euzébio Rocha, homem “idialista” mas completamente desleixado. Uma alma elevada!... ele sempre trazia consigo uma orquídea junto com um buquê de versos. Ele que me apresentou Neruda:

Vem com um homem

às costas,
vem com cem homens nos cabelos,
vem com mil homens entre o peito e os pés,
vem como um rio
cheio de afogados.


Um rio cheio de afogados... Ah!... Ninguém lembra do dr. Euzébio! Mas eu lembro... era um obcecado: doutor Getúlio o ouvia, e ele, dr. Euzébio... humm fazia o que eu queria debaixo dos lençóis. Nojento. Descuidava do asseio: um horror! Dos tímpanos e das narinas daquela alma elevada brotavam enormes tufos de pêlos grisalhos. Um horror! Ai, que horror.

Mas o Petróleo é nosso, é ou não é? Essa merda brotou dos meus pesadelos direto para os sonhos do dr. Euzébio. O líquido negro e viscoso começou a brotar daqui (apalpa o púbis com raiva) desse meu ventre seco que nunca verteu nada diferente de aborto, luxúria, interesse e desdita. Isso mesmo, eu tenho orgulho! Eu pari cadáveres! Pari camundongos! Pari duplas Sertanejas! Eu me fiz, e a história desse país escroto passa por aqui, e vocês querem saber de uma coisa? Cheira mal, muuuuuito mal.

Ah, se eu tivesse meia horinha com o presidente. Só meia horinha... Eu poderia ter sido a Evita que mudaria o rumo desse povo horroroso e banguela. Essa gente que infesta os pontos de ônibus! Essa gente que seqüestra e é seqüestrada?! Como pode? Seqüestraram minha empregada! O que eles são? Canibais?

Para mim sobraram os assessores, os cupinchas, os generais da banda, os debochados e os gordos metidos a conquistadores e piadistas, e eu os explorei até onde pude: foi por causa deles, e dos favores que me deviam (e do meu ta-len-to) que cheguei onde cheguei. Cambada de filhos da puta!

Mas nós tínhamos classe. Lá no Cassino da Urca, fiquei amiga da Elvira Pagã. Elvira era uma diva de verdade... Uma mulher de verdade. Nada a ver com essas mulheres de agora, que parecem catadas na xepa da feira: mulher-jaca, mulher-tomate, mulher-berinjela, mulher-fruta-do-conde! Que é isso? Vão se fuder! Mulheres éramos nós, mulher era Elvira. Ah, Elvira! Outros tempos. Numa ocasião, consegui o espartilho da vedete para o Silveira... inesquecível Elvira!... se não me engano, foi em troca de uma viagem para os States.

O tarado desfilava com o espartilho da Elvira na cobertura de Copacabana para políticos e cupinchas, todos tão nojentos ou mais nojentos que ele, mas era tudo no maior respeito! Quando a televisão chegou no Brasil, eu estava lá. Não ia adiantar nada o Silveira usar de influência... se eu não fosse uma estrela, a grande Febe Camacho! Naquela época era no fio de bigode! Homem era homem e mulher era mulher. Hoje é tudo viado e sapatão. Talento pra quê? Você quer fazer sucesso? Fácil, basta ser analfabeto, maltrapilho... mal ajambrado. Onde é que já se viu? Outro dia, quase que ponho um psicanalista pra correr... se não fosse o ponto! (ajeita o ponto na orelha). O sujeito vem aqui no meu programa, e diz que os adolescentes de hoje assumiram a bissexualidade sem os traumas na geração anterior... Pera lá, eu disse.

Como é que é, doutor? Que safadeza é essa? Não é que ele teve o topete de falar em “erotismo anal”!... No meu programa?! Quase ponho o sem-vergonha pra correr... mas o ponto, esse maldito ponto, me segurou... Tarados, cascateiros... Se o sem-vergonha do Silveira estivesse vivo... estaria se esbaldando... “erotismo anal”. Sei, sei.

Olha só as coisas que eu tenho que ouvir! Eu que já entrevistei reis, presidentes, estrelas de Hollywood. Todo mundo que era alguém no mundo vinha ao meu programa... Mas agora... Outro dia entrevistei uma menina que não sabia nem falar o próprio nome... devia ter o quê? No máximo 15 anos de idade, maaaagra. Uma caveirinha. Tive vontade de mandá-la para o hospital. Mas me obrigaram – o ponto, sempre o maldito ponto – me obrigou a dizer que ela era uma fofa! Uma caveira! No meu tempo, a sociedade apontava: olha lá o pederasta! E eles tinham vergonha, alguns até se matavam. Olha lá o mongolóide! E a família trancava no sótão. Hoje viraram atores de novela, tocam piano. Os pederastas vão pras ruas, e tem orgulho! Orgulho do quê? De dar o rabo? O Silveira tinha lá suas manias, até que gostava de um dedinho... mas era tudo entre quatro paredes, na surdina porra! No maior respeito! Isso mesmo! As pessoas se respeitavam, diziam bom-dia, boa-tarde e boa-noite... era tudo mais bonito. Tínhamos vergonha na cara! (Acende um cigarro no outro, dá uma longa tragada).... Ai de quem implicasse com cigarro! Fumar era fino, chique. Em Hollywood os galãs fumavam... Clark Gable fumava, Gary Cooper fumava, Cary Grant fumava ... e que homens!, machões de verdade! Homem era Homem, mulher era mulher. Hoje somos convidadas a chamar eles de afro-descendentes. E vocês viram onde um deles foi parar? (aponta para o norte e para o alto). Lá! Nunca imaginei que eu fosse viver pra ver isso. Sou de um tempo em que era cada macaco no seu galho, de um tempo em que filho da puta nenhum seqüestrava a empregada dos outros. Puta que o pariu! Me falta sensibilidade social?! Há!

PONTO (entrando):

Atenção, vamos gravar em três, dois, um já!

FEBE (tentando se refazer, abrindo um grande sorriso):

Boa noite queridas amigas e queridos amigos de todo o Brasil, sejam bem vindos ao Grande Show!...

segunda-feira, 5 de julho de 2010




Lalo Arias: VIDA QUE SEGUE

Permanecerão quietas
as palavras.
Um mundo de silêncio
será pouco.
Cresce
o luto
que nos cerca.
Esta é a flor
em questão:
a que deito
por cima de tuas mãos
cruzadas
sobre o peito,
enquanto me pergunto
o que restará dela
logo depois
que teu rosto estiver
definitivamente coberto




Vinicius de Moraes: Poema de Natal


Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.


Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.


Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.


Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.




quarta-feira, 27 de janeiro de 2010


Marcelo Montenegro e Domingos Oliveira



“Eu acho que a vida oscila o tempo todo entre o terror e a glória. Em qualquer pequeno ou grande momento, você olha e ele contém o terror, e contém a glória. Do terror, já se falou muito, e isso criou um mundo onde as alegrias da vida estão ocultas. Eu acho muito mais necessário hoje em dia falar da glória do que do terror. Já foi tudo muito denunciado. É preciso denunciar porque vale a pena viver”.

Tirei a citação do blog do meu amigo Marcelo Montenegro - que nos brinda com um texto obrigatório pra quem admira o trabalho desse grande dramaturgo, cineasta e escritor que é o Domingos Oliveira.

Pra ler o texto onde - com a sensibilidade e a inteligência que lhe são peculiares - o Marcelo, a partir de uma entrevista com o próprio, comenta, entre outras coisas, quase toda a obra cinematográfica e televisiva do dramaturgo, clique aqui.

Ando sem tempo pra escrever. Me mudei recentemente - e todos que passaram por esta experiência sabem o quanto arrumar uma casa nova pode ser cansativo. Ontem, por exemplo, sob um calor de 35 graus, passei a tarde percorrendo lojas de materias de construção. Quando a poeira (literalmente) baixar, volto a pensar em voz alta por estas paragens.

Grande texto, Cavaleiro! (Pra quem não sabe, o Montenegro, além de sensibilíssimo poeta, cineasta e orelhista juramentado, também é membro ilustre da Ordem Noturna do Cu do Tigre - uma sociedade secreta sobre a qual, para evitar perseguições dignas de um Dan Brown, me esquivo de tecer maiores comentários.)


sexta-feira, 8 de janeiro de 2010




Certa vez, afirmei numa reunião de psicanalistas:

- A diferença entre o psicanalista e a puta é apenas o órgão que alugam.

Quem já passou pela experiência de participar de uma reunião do tipo, sabe que psicanalistas, de maneira geral, nunca riem imediatamente de uma piada.

Primeiro a sala fica em silêncio: todos os olhos voltados na tua direção. Num segundo momento, eles desviam o olhar, como se refletissem profundamente sobre o que foi dito - e só depois alguns cedem ao impulso do riso. Mas apenas alguns: porque outros - impregnados pela idéia de que nenhuma palavra é inocente - limitam-se a dar uma longa tragada no cigarro e, em casos mais graves, te perguntarem com os olhos algo como "O que, na verdade, você quis dizer com isso?"

Pra me esquivar de constrangimentos do tipo - e de forma absolutamente desnecessária - resolvi emendar a afirmação:

- Nos dois casos se cobra por hora. Apesar da promiscuidade - explícita ou latente - o beijo na boca é proibido. E, ao colocar os sapatos, a gente sempre tem a sensação de que faltou alguma coisa - ou de que foi sistematicamente enganado.

Tempos depois, lendo o "Breviário de Decomposição", me deparei com este texto, que considero de uma sinceridade tocante - coisa que falta, ao falar da sua profissão, à maioria dos psicanalistas:


Cioran: Filosofia e Prostituição

O filósofo, desiludido dos sistemas e das superstições, mas ainda perseverante nos caminhos do mundo, deveria imitar o pirronismo de trottoir que exibe a criatura menos dogmática: a prostituta. Desprendida de tudo e aberta a tudo; esposando o humor e as idéias do cliente; mudando de tom e de rosto em cada ocasião; disposta a ser triste ou alegre, permanecendo indiferente; prodigando os suspiros por interesse comercial; lançando sobre os esforços do seu vizinho sobreposto e sincero um olhar lúcido e falso, ela propõe ao espírito um modelo de comportamento que rivaliza com o dos sábios. Não ter convicções a respeito dos homens e de si mesmo: tal é o elevado ensinamento da prostituição, academia ambulante de lucidez, à margem da sociedade como a filosofia. "Tudo o que sei aprendi na escola das putas", deveria exclamar o pensador que aceita tudo e recusa tudo, quando, a exemplo delas, especializou-se no sorriso cansado, quando os homens são, para ele, apenas clientes, e as calçadas do mundo o mercado onde vende sua amargura, como suas companheiras seu corpo.

* * *

Ao procurar imagens pra ilustrar este post, encontrei isto aqui:


Quem acompanha este blog, sabe que existe aí um mistério (ver o post "Necrófila Disney", de 6 de outubro de 2009.) Tenho certeza que não me enganei de endereço.

Se alguém puder elucidá-lo, agradeço.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010



A Profanação Consentida


Um sentimento que alguns chamam de "fenômeno" ou "comunicação" estética, mas que prefiro chamar de "cagaço": é quando, de repente, se percebe que as palavras vão além do que está escrito na página, ou que as tintas dispostas numa tela se abrem pra um mundo de significados ocultos ou inusitados. Não estou, de maneira nenhuma, falando de alegorias - mas daquilo que os grandes artistas deixam, de propósito, apenas insinuado, esboçado na obra, e que só se completa pela inteligência (ou "sensibilidade") do espectador.

Como todos os textos alheios que transcrevo por aqui, este do Fernando Pessoa foi um dos que me ensinaram a "ver", a sentir, como num súbito e inesperado gole, as tortuosas paisagens e as galerias escondidas - nem sempre de modo premeditado - pelas pequenas frestas da aparência. Porque a arte (ou cumplicidade) de curtir um bom "cagaço" é um troço que se aprende - e tanto melhor é este aprendizado quanto mais dissimuladas forem as intenções pedagógicas por parte daqueles que de vez em quando são chamados de mestres.

Num primeiro olhar, trata-se de um convite ao suicídio. Mas, nas entrelinhas deste texto do Pessoa, o que se lê é uma exaltação individualista e desencantada da vida - que encontra eco em Camus, quando ele conjectura, em "O Mito de Sísifo", que as pessoas se matam pelas razões idênticas que as impelem a continuar vivendo.

Eu tinha uns treze ou quatorze anos quando achei, nas gôndolas de um supermercado, uma coletânea deste poeta, do qual na época conhecia apenas o nome. Abri numa página qualquer - e não sei por quanto tempo fiquei ali, parado, lendo e relendo o poema.

Não tinha dinheiro o suficiente; sem pensar, enfiei o livro na parte da frente das calças e cobri com a camiseta. O frio na barriga que senti durante todo o trajeto - até passar pelos caixas, cruzar a porta e finalmente me ver livre do olhar dos seguranças - é bem semelhante a expressão fisiológica mais comum disto que, no campo da estética, resolvi chamar de "cagaço": uma súbita apropriação, de imprevisíveis conseqüências, acompanhada pelo sentimento clandestino - e quase ia dizendo profano - de pegar carona na alma de alguém.


Fernando Pessoa: Se Te Queres Matar



Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...