terça-feira, 28 de julho de 2009

O Jazz, o Guarda-chuva e o Martírio do Boi


Ontem foi a noite mais fria do ano. Na rua, uma chuvinha fina, que te pegava pela diagonal da cara, tipo navalha de Van Gogh. Cacete. Porque a gente só lembra de comprar um guarda-chuva quando já está todo encharcado? Tinha combinado com minha guria da gente tomar um porre, pra comemorar o início das suas férias. Saí de casa todo encolhido dentro da japona pra ouvir jazz em ótima companhia. Só eu, ela, o trago e a música. Em noites como esta, as ovelhas não costumam se desentocar da manjedoura.

É. Tem jazz em Floripa. No “Blues Velvet Bar”, um lugar do centro, meio underground, freqüentado por universitários e pelo povo que antigamente atendia pela alcunha de GLS. Acho que, na época, foi o João Silvério Trevisan quem melhor traduziu a sigla: “Gays, Lésbicas & Suspeitos”. Vou deixar assim: estas siglas costumam mudar a toda hora mesmo. Pra cada letra, um tipo de “orientação sexual” devidamente categorizado. Dia destes o alfabeto se esgota e – derrotados pela própria genitália – eles voltam a se chamar GLS. Quando este povo vai se dar conta de que uma tara começa a perder a graça no momento em que é batizada com um nome? A psiquiatria e a MTV vivem disto: respectivamente, classificar e atribuir um uniforme descolado pras esquisitices alheias. As tais das tribos. É nestas horas que sinto o maior orgulho do meu anacronismo. E também da minha cabeça dura – que sempre fez questão de rejeitar qualquer tipo de carapuça.

Cheguei e o lugar ainda estava fechado. Com os óculos salpicados pela garoa e o nariz transformado numa pedra de gelo, resolvi dar meia volta. No fim da rua, o único bar aberto: o “Dona Delícia”. Apesar do nome, não se trata de um puteiro – mas, como avisa o cardápio, do “bar anexo ao Hotel Valerim Plaza”. Só eu e uma dose de conhaque. A muvuca parecia estar se desenrolando no andar de cima, onde um violão-e-voz desfiava pérolas da Pentelhomusic. Os seus olhos são espelhos d´água. Um olho cego vagueia procurando por um. Por onde for, quero ser teu par.

O amor é azulzinho.

O bom é que estava quente lá dentro. E, de vez em quando, uma bunda subia as escadas, com botas de salto e calças de montaria sublinhando a calcinha atochada.

Findo o conhaque, de novo a rua. Desta vez o boteco estava aberto. A porta gradeada e o toque na campainha. Escadas íngremes e estreitas. A vida cultural de Florianópolis é tão rasa que pra se chegar ao underground a gente tem que encarar uma escadaria. Pelo menos é assim na maioria dos bares que o povo daqui chama de “alternativos”. Deve ser uma armadilha das forças conservadoras. Se algum dia pegar fogo num destes sótãos, a moral e os bons costumes da província estarão salvos por um bom tempo.

De novo apenas eu, os funcionários da casa e a banda, que começava a arrumar os instrumentos. A mesa ao fundo. Luz néon. O litrinho de cerveja uruguaia (aqui me permito uma licença poética). Um lugar pequeno, de teto baixo. Nos telões, em preto-e-branco, clássicos do jazz: caras negras, sorridentes e balofas, curtidas pela cachaça. Tiozinhos de terno, com óculos de tartaruga. A era pré-performance: quando os guitarristas não dobravam o corpo, nem faziam careta pra tocar. Todos pareciam estar pouco se lixando pra câmeras e holofotes. Uma época em que o recreio era escasso – e as mãos dos músicos, educadas pelo cabo da enxada.

Durante um solo de sax, Thelonius Monk se levanta do piano e começa a dançar. Todo torto, um braço dobrado frente ao peito e o outro pendurado, como se estivesse com os amortecedores chumbados. Depois volta ao banquinho e, como um possesso, agride o teclado, fazendo lembrar a todos que o piano, com toda a sua chinfra, não passa de um primo mais afrescalhado do tambor.

A cerveja desce rebolando pela garganta. E começa a se arretar com o conhaque na ampla cama redonda do meu bucho. A melodia estanca e a câmera foca o baterista. Dois braços. Um bumbo. Dois pratos, dois tambores – e duas mil e quinhentas baquetas.

Numa manhã inverno, há uns trinta anos atrás, eu, meu irmão, meu avô e meu pai, quebrando a geada com taco das botas: o campo ancestral, monótono. A entrevada ondulação das coxilhas. Lembro que estava muito orgulhoso com minhas botas novas, forradas de pele de ovelha. Um pouco adiante, um grupo de peões, com um boi pelo cabresto.

Ao nos aproximarmos, o capataz, numa reverência, ofereceu ao meu avô uma faca. O velho agradeceu com um breve aceno de cabeça. E, numa extensão do cumprimento – fez com que a lâmina entrasse e saísse com doçura do peito do animal. Virei o rosto pro irmão, dois anos mais novo. E vi, desapontado, que ele olhava firme o bicho que, em câmera lenta, se ajoelhava sobre o próprio sangue, os olhos revirados, como naquelas gravuras de Joana D´arc, momentos antes do martírio. Com dois gestos vigorosos, meu avô limpou a lâmina no pasto e a devolveu ao capataz. Munidos de machadinhas e facas afiadas, os peões atacaram o boi e o carnearam ali mesmo, sobre o couro.

Horas depois estava saboreando – assado pelo avô, antigo açougueiro e contrabandista de gado – o melhor churrasco que já comi na vida.

O baterista do Thelonius Monk me fez recordar esta cena. O misto de violência e doçura com que tratava os tambores. Se filmado do peito pra cima, parecia não ser ele o responsável por toda aquela quizomba.

Súbito, os telões escureceram: no lugar do jazz, surgiram antigos desenhos da Betty Boop e do Gato Félix. A encrenca agora era ao vivo. Os músicos – baixo, guitarra e bateria – pareciam estar se divertindo. Ao meu lado, duas lésbicas se beijavam. Minha guria se chama Alice. Mas acho que seus pais se enganaram de personagem: ela está sempre atrasada. Da minha parte, estava cada vez mais bêbado, a música cada vez melhor e as sandalinhas, cada vez mais lindas e apaixonadas. Tudo sob controle, portanto.

Alice chegou, esbaforida. Mas, ao contrário do coelho da história, com um sorriso iluminado no rosto que fez virar a cabeça das sapatas. E, com este senso de cuidado do qual apenas as mulheres são capazes – o mesmo que nos faz morrer de vergonha da própria tosquice –, me trouxe de presente um guarda-chuva.


14 comentários:

Unknown disse...

Tá cada vez mais díficil descobrir boa prosa, das que não dão trégua, como a sua. Sugestão do Mário Bortolotto. Valeu.

Nilo Oliveira disse...

Eu que agradeço a visita, Lalo. Abraço.

Unknown disse...

Sempre é bom ler algo que vem de boa cepa. Mas há jazz em Floripa MESMO??? Acho que é pura ficção! Abraço.

Nilo Oliveira disse...

Não só tem como o Xixo da Bicha ia fazer o maior sucesso no lugar. Grande abraço, meu velho. E aparece por aqui pra conferir com os próprios olhos.

Magrisso disse...

Ainda perplexo.

Nilo Oliveira disse...

Perplexo com o que, meu velho? Com o texto, com o fato de ter jazz em Floripa ou de eu, finalmente, assumir uma namorada? Grande abraço.

Cláudia Sba disse...

Muito bom, adorei! Viajei na história! E olha q nem fumei!
Mas onde é mesmo esse bar?

Nilo Oliveira disse...

O bar fica na Pedro Ivo, 147. É uma travessa da Felipe Schimidt. E o nome da banda é Ralph Warren Trio. Que bom que você gostou, Cláudia. Abraço.

A MACACA disse...

Se tu tivesse assistido o Grenal aqui em casa, veria o mesmo olhar do irmão, no segundo gol tricolor.

Dinho.

Nilo Oliveira disse...

É nóis, mano. Lembrou da cena?

Magrisso disse...

Só não registro o aindaperplexo.blogspot porque acabei de descobrir que o Aluysio Robalinho (vejam só), já o fez.

Ainda perplexo por ver/ouvir 'minha namorada' no teu discurso, seja escrito ou falado.

Ainda perplexo por ver um Blog de alguém que até um par de anos estufava o peito e declarava "sou CONTRA o email".

Ainda perplexo por ver o Blog criado sem ter recebido um telefonema do tipo "E aí, seu bosta. Seguinte, quero ter um destes blógui. Como é que eu consigo uma merda destas? É muito caro?"

Nilo Oliveira disse...

Em primeiro lugar em nenhuma parte do texto está escrito "minha namorada". Em segundo lugar, ainda sou contra email, telefone celular e qualquer outro meio de comunicação que nos encontre quando a gente não quer ser encontrado. E pra terminar, seu bosta, como é que a gente faz pra adicionar uns filminhos nesta porra? Já tentei e não consegui. Te ligo de noite. Abraço.

Magrisso disse...

Não ligou de noite, claro.
Mas vê no http://tonhafever.blogspot.com/ que pelo jeito a Fofa sabe como fazer.

Nilo Oliveira disse...

A fofa. Quem diria. De apartamento novo, escrevendo bem... Um humor parecido com teu, só que na versão feminina. Uns Matusaléns. É isto que a gente virou.Abraço.