terça-feira, 6 de outubro de 2009



Necrófila Disney



Na entrada de cada cemitério – um cardápio de presuntos ilustres.


Em Montparnasse, Sartre, Beauvoir, Becket, Baudelaire, Cortázar, Maupassant, Serge Gainsbourg, entre outros. No Père Lachaise, Balzac, Wilde, Delacroix, Chopin, Proust, Piaf, Kardec, Camus e outros milhares de defuntos anônimos, que tentam descansar em paz – apesar dos turistas, suas máquinas digitais e seus gritos de júbilo, cada vez que encontram, estampado na pedra, o nome desgastado do ídolo.


Embaixo do nome – duas datas. As únicas que realmente têm alguma relevância pro indivíduo enterrado ali embaixo.


Lápides góticas, escuras e tortas. Cerquinhas de ferro com grades em forma de lança. Flores rotas, apodrecidas. Os corvos estão por toda parte, aos pulos, em vôos curtos e rasantes, pontuando o silêncio com som rasgado dos seus gritos.




Nas copas das árvores, espalhadas pelo chão, navegando pelo ar num movimento preguiçoso – em contraste com o cinza envelhecido dos anjos, das cruzes e do céu de outono – as folhas das castanheiras emprestam à paisagem uma cor amarelo-enrubescida de pêssegos maduros. A cada passo, produzem o som crocante de ossinhos triturados, de terra úmida mastigada entre os dentes.


Dobro à direita na primeira alameda do Père Lachaise, em busca dos túmulos de Abelardo (1079- 1142) e Heloísa (1101-1164).


Os defuntos que estão enterrados por aqui são fudidos. Ás vezes chegam a ter - só de morte - o dobro do tempo de existência do teu país de origem.


Os amantes estavam lá, enterrados um ao lado do outro, juntos, finalmente - o que serve de consolo muito mais para os espíritos românticos que os visitam do que pra Abelardo, Heloísa, o filho do seu amor bastardo (também enterrado ali, junto aos pais) ou a qualquer um dos envolvidos na trágica história.


(Quem não souber quem são Abelardo e Heloísa, procure no Google. Vale a pena).


De repente me vejo sozinho numa alameda suja e estreita: tenho que cuidar pra não pisar nas lápides - em alguns pontos, meus ombros chegam a roçar nas construções de mármore e granito.


A temperatura despenca.


Sinto um calafrio subir pela espinha e me arrepiar os cabelos da nuca.


Dizem os entendidos nas coisas do além que estes são sinais de que algum fenômeno paranormal se encontra em decurso. Como não acredito em gente viva que se autoproclame especialista em coisas do além, sigo tranqüilo - mas fazendo o possível pra chegar o quanto antes na alameda principal.


Alguns passos a frente, parado diante de um mausoléu, vejo um senhor baixinho, atarracado. Veste um sobretudo de cor escura e usa um chapéu coco, enterrado na testa.


Quando me aproximo, ele me olha de canto. Posso ver seus bigodes grisalhos, com as pontas viradas pra cima – e, assustado, some lá dentro.



Passo reto. Nem olho pro lado.


Vai saber.


Uma coisa é se entediar com o clichê quando sentado na poltrona do cinema. Outra coisa é – na vida real – tentar ligar o carro enquanto, pelo retrovisor, o psicopata se aproxima.


No fundo do cemitério, o muro onde fuzilaram 174 líderes da Comuna de Paris, ainda esburacado de balas.


Diante do busto de Allan Kardec, um grupo consternado de vivos e mortos ora, num silêncio respeitoso.


O granito do túmulo do Oscar Wilde cravejado de marcas de batom: viados do mundo inteiro acharam de homenagear assim o seu mártir.


A idolatria abjeta diante dos restos do Jim Morrisson.


Muito mais comoventes são os mortos anônimos: em lápides de diversas épocas – 1790, 1880, 1917, 1942 – em alto relevo, a mesma incrição: “Mort pour la France”.


Em algumas delas, várias datas de nascimento e apenas uma data de morte: a peste, os bombardeios, os fuzilamentos coletivos dos participantes da resistência – há mais de dois mil anos que esta terra serve de laboratório pra essa oficina de fabricar mortalhas a qual, ironicamente, chamamos civilização. E tudo vem desaguar aqui, neste grande olho de água parada, onde a coragem e a covardia, o talento e a mediocridade se decompõem lado a lado – a sensação incômoda de que, a qualquer momento, um braço da história vai brotar do chão e me agarrar pelo tornozelo.

Não tirei muitas fotografias. Fiquei constrangido pelos novos mortos e por seus familiares, que de vez em quando passavam em cortejo, de óculos escuros, com suas braçadas de flores e a cara fechada do luto.


Em Montparnasse, depois de visitar Becket, Baudelaire e Cortazar – motivado por uma espécie de vingança mórbida – saí em busca do túmulo do Cioran.


Seria divertido ver o cara que disse ser a notoriedade a pior coisa que pode acontecer a um escritor cercado de flores e despachos (em Paris, eles têm o costume de enfeitar os túmulos com pedrinhas e conchas, formando corações, setas, palavras e outros símbolos de dor, admiração ou saudade): iria descontar no filósofo da Transilvânia todos os encostos literários e filosóficos que me assombraram durante a vida inteira.


Máquina em punho e olhar de perdigueiro, anotei o endereço (div. 6 – tobeau 73) e andei uns vinte minutos por entre as alamedas, sob um frio de rachar; procurava, como pistas, o aglomero, os cacarejos e o espocar dos flashs.


O costumeiro parlamento dos corvos (eles estão por toda a cidade, como pombos domésticos. Parecem saber que, por aqui, de tempos em tempos o rango é farto) – as janelas antigas dos prédios em torno, como um prolongamento da paisagem de mausoléus e capelas.


A principal diferença do Cimetière du Montparnasse para o Pére Lachaise é o humor de alguns túmulos: esculturas imitando fantasmas saindo do chão, bustos representando o defunto dando uma gargalhada. Até a escultura de um gato, ornado com um mosaico de pedras coloridas, havia por lá.


Finalmente encontrei o que estava procurando: no início, intrigado, tive que dar várias voltas em torno do retângulo de mármore, até ter certeza de que estava no lugar certo.


Não pude conter a gargalhada: mesmo depois de morto, o velho Cioran tinha me dado uma rasteira.


Não havia ninguém em volta a lhe prestar homenagens. Nenhuma foto, nenhuma inscrição, nenhum nome, nenhum ornamento – nada.


Seu túmulo se resumia a um bloco retangular de mármore negro, a rés do chão. E as únicas inscrições que tinham nele eram, escondidas na parte de trás, o endereço da campa - e a data solitária da sua morte.


2 comentários:

Anônimo disse...

Vovó Stella devia me levou pra Disney errada.
abraço,
MM

Nilo Oliveira disse...

Tu podes fazer a mesma coisa nos cemitérios do Rio. Vovó Stella, aliás, deve estar por aí, enterrada no Caju, com aquele chapeuzinho do Mickey. Abraço.