sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Bernhard por David Levine

Três Pequenas Lições 
de Thomas Bernhard


I


O Meu Bisavô era Negociante de Banha


O meu bisavô era negociante de banha
e hoje
toda a gente o conhece ainda
entre Henndorf e Thalgau,
Seekirchen e Köstendorf,
e todos ouvem a sua voz
e se juntam
à sua mesa,
que era também a mesa do Senhor.
Em 1881, na Primavera,
decidiu-se pela vida: plantou
uma parreira junto à parede da casa
e reuniu os mendigos;
a mulher, Maria, a da fita preta,
deu-lhe mais mil anos.
Ele inventou a música dos porcos
e o fogo da amargura,
falava do vento
e do casamento dos mortos.
Ele não me daria nenhum pedaço de toucinho
para os meus desesperos.

II

(...) Parece que a humanidade só se esforça enquanto tem a esperar diplomas estúpidos, que pode exibir em público para obter proveitos, mas, quando já tem na mão tais diplomas estúpidos em número suficiente, deixa-se levar. Ela vive em grande parte só para obter diplomas e títulos, não por qualquer outra razão, e, depois de ter obtido o número de diplomas e títulos que, na sua opinião, é suficiente, deixa-se cair na cama macia desses diplomas e títulos. Ela não parece ter qualquer outro objectivo para a vida. Não tem, segundo parece, qualquer interesse numa vida própria, independente, numa existência própria, independente, mas apenas nesses diplomas e títulos, sob os quais a humanidade há já séculos ameaça sufocar. As pessoas não procuram independência e autonomia, não procuram a sua própria evolução natural, mas apenas esses diplomas e títulos e estariam, a todo o momento, prontas a morrer por esses diplomas e títulos, se lhos entregassem e dessem sem qualquer condição, esta é que é a verdade desmascaradora e deprimente. Tão pouco estimam elas a vida em si que só vêem os diplomas e títulos e nada mais. Elas penduram nas paredes das suas casas os diplomas e títulos, nas casas dos mestres talhantes e dos filósofos, dos chefes cozinheiros e dos advogados e juízes estão pendurados os diplomas e títulos e eles fitam esses seus diplomas e títulos, durante toda a vida, com os olhos ávidos que adquiriram ao olhar com essa ávida fixidez permanente esses diplomas e títulos. As pessoas não dizem, no fundo, sobre si próprias, eu sou a pessoa tal e tal, mas sim eu sou o título tal e tal, eu sou o diploma tal e tal. E as suas relações não são com a pessoa tal e tal, mas sim com o diploma tal e tal e com o título tal e tal. Assim, podemos dizer perfeitamente que, na humanidade, não são as pessoas que convivem umas com as outras, mas apenas os diplomas e títulos, as pessoas são, na humanidade, dito de uma forma grosseira, indiferentes, importantes são apenas os títulos e diplomas. Não são as pessoas que, há séculos, são vistas, mas apenas títulos e diplomas. Elas não encontram no café o senhor Huber, mas sim o doutor Huber, não vão jantar com o senhor Maier, mas sim com o engenheiro do mesmo nome. Parece que só assim atingiram o seu objectivo, quando já não são a pessoa, mas sim o engenheiro, quando já não são, como julgam, apenas a senhora Muller, mas sim a senhora juíza. E, nos seus escritórios, também não recebem a senhora, mas sim o excelente e estúpido diploma(...) 

(in "Extinção")


III


(...) Ficam reduzidos a uma única frase bem sucedida os nossos grandes filósofos, os nossos maiores poetas, dizia ele, é essa a verdade, lembramo-nos muitas vezes apenas daquilo a que se chama uma tonalidade filosófica e mais nada, dizia ele, pensei. Estudamos uma obra grandiosa, a obra de Kant por exemplo, e essa obra fica, com o correr do tempo, reduzida à pequena cabeça de prussiano oriental, que é a de Kant, e a um universo inteiramente vago, feito de noite e de névoa, que vai dar à mesma incapacidade de todos os outros, dizia ele, pensei. Pretendia ser um universo de grandiosidade, e dele não restou mais do que um pormenor risível, assim dizia ele, pensei, e assim acontece com tudo. Aquilo a que chamamos grandeza não passa, afinal, de algo que apenas nos comove por provocar o riso e a compaixão. O próprio Shakespeare confrange-nos com o seu ridículo se tivermos um momento de lucidez, dizia ele, pensei.  Já há muito que os deuses figuram nas nossas canecas de cerveja adornados apenas duma barba, dizia ele, pensei. Só o imbecil é que venera, dizia ele, pensei. O chamado homem de espírito consome-se a produzir uma obra que ele considera digna de marcar uma época, e no fundo mais não faz do que tornar-se ridículo, quer se chame Schopenhauer ou Nietzsche, é indiferente, quer tenha sido Kleist ou Voltaire, tudo o que vemos é um homem que nos faz sentir compaixão, um homem que fez mau uso da sua cabeça e que afinal se esforçou ad absurdum. Que foi submergido e ultrapassado pela história. Os grandes pensadores foram por nós encerrados nas nossas bibliotecas, e de lá nos fitam, condenados para sempre ao ridículo, dizia ele, pensei. Dia e noite escuto o lamento dos grandes pensadores que fechamos nas nossas bibliotecas, essas ridículas sumidades de espírito, como cabeças mirradas dentro de uma vitrina, assim dizia ele, pensei. Toda essa gente profanou a natureza, dizia ele, cometeu o crime maior contra o espírito, e por isso são punidos por nós e encerrados para sempre nas nossas bibliotecas. Porque morrem sufocados nas nossas bibliotecas, essa é que é a verdade. As nossas bibliotecas são como que presídios em que encerramos as nossas sumidades de espírito, o Kant numa cela de isolamento, como é natural, tal como Nietzsche, tal como Schopenhauer, como Pascal, como Voltaire, como Montaigne, as figuras mais insignes em celas isoladas, todos os outros em celas colectivas, mas todos ali metidos para todo o sempre, meu caro, para toda a eternidade até ao infinito dos tempos, eis a grande verdade. E infeliz daquele que, condenado por ter cometido o crime maior, tente a evasão e consiga fugir, porque logo o desgraçam e o lançam no ridículo, essa é que é a verdade. A humanidade sabe proteger-se de todos os chamados grandes de espírito, dizia ele, pensei. O espírito, onde quer que surja, é logo dominado e aprisionado, e, como é natural, logo lhe apõem o carimbo de espírito negativo, dizia ele, pensava eu (...) 


(in "O Náufrago")

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