segunda-feira, 2 de abril de 2012



Uma Seresta



Sempre fui mais seresta que samba, mais blues que rock'n'roll. Acho as serestas verdadeiros sítios arqueológicos desse estado limite, no qual um homem se vê subitamente lançado entre a civilização e a barbárie, chamado "dor de corno". 

"Número Um", do Mário Lago e do Benedito Lacerda, é um belo exemplo disto.  Principalmente o último verso (a chamada "chave de ouro") que dá título a música. 

Toda a estrofe final, aliás, é matadora:

Satisfaz tua vaidade
Muda de dono a vontade
Isso em mulher é comum
Não guardo frios rancores
Pois entre os teus mil amores
Eu sou o número um.

O cara deu tudo pra mulher. A mulher o corneou. Quando julgava que as feridas já tinham cicatrizado, ele a vê passar feliz, de braços dados com outro. As feridas reabrem. O sangue que escorre dos buracos na testa nubla sua visão, obrigando-o a chafurdar no passado. 

O desencanto e o desespero são irmãos siameses de personalidades opostas.  

No auge do sofrimento, o ex-corno tira do bolso interno do paletó esse duvidoso troféu - um triste, mumificado cabaço, tanto faz se no sentido real ou figurado - e o esfrega na cara da putinha como se fosse um argumento definitivo, um símbolo inquestionável de vitória.

Em outras palavras: ele não tem nada melhor em que se agarrar.

Trata-se de um corno civilizado. Nessas condições, bem que poderia ter sacado do bolso uma faca ou um revólver; o grau de civilização de um homem é diretamente proporcional a capacidade que ele tem de primeiro enganar a si mesmo, e depois o mundo a sua volta. Porque, se prestarmos atenção na letra, pra mulher o suposto defloramento foi na verdade um alívio, uma espécie de habeas-corpus que abriu a possibilidade dela sair por aí, dando mais que xuxu na cerca (estamos falando da década de 30 ou 40). Já pra ele a chaga ainda dói... E, pelo jeito, costuma sangrar cada vez que o inesperado a cutuca de um jeito mais duro.

Falei num texto anterior e vou repetir: considero um homem que nunca passou por isso um pouco menos homem. Ás vezes armamos as arapucas, ás vezes caímos nelas. E as serestas e os blues estão aí pra provar que estamos muito bem acompanhados nesse agridoce teste de coragem.   

Abaixo, a música inteira, na voz de Orlando Silva. Normalmente costumo evitar esses clipes do YouTube, cheios de fotos breguíssimas "ilustrando" a canção. Nesse caso, porém, parece combinar. 











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