Uma Seresta
Sempre fui mais seresta que samba, mais blues que rock'n'roll. Acho as serestas verdadeiros sítios arqueológicos desse estado limite, no qual um homem se vê subitamente lançado entre a civilização e a barbárie, chamado "dor de corno".
"Número Um", do Mário Lago e do Benedito Lacerda, é um belo exemplo disto. Principalmente o último verso (a chamada "chave de ouro") que dá título a música.
Toda a estrofe final, aliás, é matadora:
Satisfaz tua vaidade
Muda de dono a vontade
Isso em mulher é comum
Não guardo frios rancores
Pois entre os teus mil amores
Eu sou o número um.
O cara deu tudo pra mulher. A mulher o corneou. Quando julgava que as feridas já tinham cicatrizado, ele a vê passar feliz, de braços dados com outro. As feridas reabrem. O sangue que escorre dos buracos na testa nubla sua visão, obrigando-o a chafurdar no passado.
O desencanto e o desespero são irmãos siameses de personalidades opostas.
No auge do sofrimento, o ex-corno tira do bolso interno do paletó esse duvidoso troféu - um triste, mumificado cabaço, tanto faz se no sentido real ou figurado - e o esfrega na cara da putinha como se fosse um argumento definitivo, um símbolo inquestionável de vitória.
Em outras palavras: ele não tem nada melhor em que se agarrar.
Trata-se de um corno civilizado. Nessas condições, bem que poderia ter sacado do bolso uma faca ou um revólver; o grau de civilização de um homem é diretamente proporcional a capacidade que ele tem de primeiro enganar a si mesmo, e depois o mundo a sua volta. Porque, se prestarmos atenção na letra, pra mulher o suposto defloramento foi na verdade um alívio, uma espécie de habeas-corpus que abriu a possibilidade dela sair por aí, dando mais que xuxu na cerca (estamos falando da década de 30 ou 40). Já pra ele a chaga ainda dói... E, pelo jeito, costuma sangrar cada vez que o inesperado a cutuca de um jeito mais duro.
Falei num texto anterior e vou repetir: considero um homem que nunca passou por isso um pouco menos homem. Ás vezes armamos as arapucas, ás vezes caímos nelas. E as serestas e os blues estão aí pra provar que estamos muito bem acompanhados nesse agridoce teste de coragem.
Abaixo, a música inteira, na voz de Orlando Silva. Normalmente costumo evitar esses clipes do YouTube, cheios de fotos breguíssimas "ilustrando" a canção. Nesse caso, porém, parece combinar.
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