sábado, 23 de abril de 2011

Reflexões Desertoras (2)



Há duas postagens, citei Borges de memória. Acabei cometendo alguns enganos, é lógico - ou não é pra isso que serve a memória?

Mas não errei o alvo tanto assim. A passagem lembrada no outro post pertence mesmo ao capítulo VIII do "Evaristo Carriego", sob o título de "História de Ginetes". Está no rodapé da primeira página e diz o seguinte: "Burton escreve que os beduínos, nas cidades árabes, tampam o nariz com lenços ou com algodões; Amiano, que os hunos tinham tanto medo das casas como dos sepulcros. Da mesma forma, os saxões que irromperam na Inglaterra no século V não se atreveram a morar nas cidades romanas que conquistaram. Deixaram-nas cair aos pedaços e compuseram depois elegias para lamentar essas ruínas". E mais a frente, citando Grousset: "Os mongóis tomaram Pequim, degolaram a população, tomaram as casas e depois atearam fogo. (...) Há aí um caso interessante para os especialistas da geografia humana: o embaraço do povo das estepes quando, sem transição, o acaso lhes entrega velhos países de civilização urbana. Queimam e matam, não por sadismo, mas porque ficam desconcertados e não sabem agir de outra forma."

Noutra passagem, ainda contrapondo o "ginete" - o homem que vive na planície, sobre o lombo de um cavalo - aos "jardins simétricos" da vida urbana, Borges conta que um general que defendia Montevidéu, temendo que seus homens invadissem as ruas da cidade sitiada e causassem problemas, foi se consultar com o historiador Luís Melián Lafinur - e este o tranquilizou, dizendo que não havia perigo, "porque o gaúcho teme a cidade."

É isto. Seja lá qual for o motivo, é sempre um prazer voltar  aos livros do Borges. Nem que seja pra reabastecer a memória, "essa moeda que nunca é a mesma", como ele mesmo a define.


Tirei as citações do volume I das Obras Completas, Editora Globo, páginas 159-162. Pra quem tiver acesso, vale a pena dar uma olhada.



sexta-feira, 22 de abril de 2011



Samba pras Fadinha

Eu e o João, na porta do Caiçara, depois de encarar uma dobradinha

Um samba composto por mim e pelo Joãozinho Batista. A gente chamava de “fadinhas” essas adolescentes de corpo esguio e nariz empinado, que assombravam nossa imaginação de velhos tarados com seu passo elegante, de potrinhas de raça, e a dissimulada carinha de até-empresto-mas-não-dou (eu devia ter uns vinte e poucos anos na época e o João, não mais de trinta. Mas a gente já se achava velho. Uma vantagem: hoje posso dizer que apenas coincidimos com a cara – e com a tara senil – que sempre imaginamos ter).

Começava com uma bossa nova, adagio, ma  non troppo:

Fecha os olhos, fadinha, fecha
Que eu quero te dar uma flor
Não dessas feitas de pétalas
Que cheiram sem ter sabor
A flor que eu vou te dar
Será bem mais saborosa
Macia e cor de rosa
Pra em tuas mãos desabrochar
Uma flor que cresce à míngua
E em teu colo, que delícia,
Um dia irei plantar...

(O ritmo mudava – allegro, molto vivace – e o samba comia):

Foi no meio da orgia
Duas noites sem dormir
Que baixou a pomba-gira
Do sambar até cair
E do corpo das morena
Exalava perdição
Cheguei na boca de cena:
‘E as fadinha, hein, João?’

(No breque, o Joãosinho fazia um bico obsceno e afirmava, com muita propriedade, inteligência e verdade cênica: “UUUh!”)

E a boca molhadinha das fadinha
E o cheiro adolescente das fadinha
E os peitinho que cabe inteirinho na mão
E as fadinha, hein, João
E as fadinha, hein, João
(ad infinitum)

Na época, pensamos em vender esta pérola do cancioneiro pra algum grupo de pagode. Ainda estamos abertos a negociações. Aos interessados, favor deixar contato.


quinta-feira, 21 de abril de 2011


Reflexões Desertoras



Meses atrás, caíram na minha mão, um seguido do outro, o "Meridiano de Sangue", do Cormac McCarthy, e "Os Sete Pilares da Sabedoria", do T. E. Lawrence (o "Lawrence da Arábia"). Dois livros cujo personagem principal é o deserto: homens andando pra lá e pra cá, ocupados em guerras, armações políticas e massacres, enquanto a paisagem, quase sem oferecer lugares pra descansar os olhos ou a esperança, parece rir em silêncio daquilo tudo - apenas aumentando, entre uma emboscada e outra, sua infinita coleção de esqueletos.

Por tabela, lembrei de uma passagem do Borges (acho que do "Evaristo Carriego"), onde ele diz que os nômades do Saara, assim como os índios do Pampa, queimavam as cidades e depois acampavam ao relento, fora das poucas construções que ainda ficavam de pé, não por sadismo e costume, mas por um espécie de pavor, em muito suscitado pela incompreensão: como alguém podia viver naquelas gaiolas de pedra,  apartados da planície? E, só pra citar uma referência de quintal, foi atravessando pela segunda vez um deserto que Riobaldo solidificou em si a coragem recém adquirida,  talvez emprestada pelo demônio.

Quando era pequeno, morei na fronteira com a Argentina, e  tive algumas vezes a experiência de ficar sozinho, frente a frente com o Pampa - o que, em alguns momentos, representou o mesmo que encarar minha própria insignificância diante das coisas que estão ali e sempre estarão, indiferentes ao teatrinho epiléptico imposto pelas civilizações e suas rotas tontas.

Lawrence comenta que os profetas de todas as grandes religiões que se perpetuaram, cumpriram mais ou menos o  mesmo ciclo: "O nascimento os colocara em lugares apinhados. Um anseio intenso e incompreensível os levava ao deserto. Ali viviam mais ou menos tempo, em meditação e abandono físico. Depois voltavam, com suas mensagens imaginadas perfeitamente definidas, a fim de pregá-las aos seus antigos - e agora duvidosos - companheiros. (...) O impulso para Nitria sempre foi irresistível aos pensadores da cidade, provavelmente não porque encontrassem Deus habitando lá, mas porque na solidão ouviam mais claramente a palavra viva que já levavam dentro de si." E, em outro trecho, falando dos seus abnegados adversários e companheiros de armas: "O beduíno não podia procurar Deus dentro de si; estava absolutamente convencido de que era ele quem estava dentro de Deus."

Pra mim, períodos de isolamento sempre foram fundamentais. Escrevo de madrugada. Uns mais, outros menos, todo mundo carrega dentro si algumas paisagens desoladas. Alguns vivem em função de arrumar maneiras de povoá-las, fugir do silêncio absurdo. Outros se recolhem e escutam. 

Acho que escrever deve muito à manipulação - dentro do possível, consciente - dessas duas necessidades do espírito.