quarta-feira, 22 de junho de 2011


Foi o Joãozinho quem me deu a letra, por telefone, lá de Foz do Iguaçu: "Vai sair este domingo um conto do Mirisola na Folha. Parece que meio inspirado naquele passeio que demos por Copacabana..."

O Joãozinho é um cara espiritualizado. No dia seguinte ao referido passeio - segundo ele, cercado de pombas-giras mercenárias, banhadas por luzes caleidoscópicas vermelhas e azuis, e exus que rodavam em torno deles num pé só, como piorras gargalhantes - confidenciou pro Mirisola que tinha sonhado com umas coisas estranhas... Mais precisamente com galeões que atracavam numa Copacabana ainda selvagem, e com piratas que caminhavam pela praia na sua direção.

- Pirata?! - gritou o Mirisola.

- É... - respondeu o João, enquanto uma sombra lhe atravessava o semblante.

- Mas pirata mesmo, com tapa-olho e tudo?

O João balançou afirmativamente a cabeça, olhando pros lados, como se forças invisíveis estivessem se aproximando pra escutar a história.

- Caralho, Baixinho!... Tem certeza que não era o fantasma de algum folião?

Não pude comprar a Folha. E também não consegui ler o conto na versão on-line. Então pedi ao Mirisola que me enviasse o arquivo, no que fui gentilmente atendido. Citando um famoso profeta carioca, "gentileza gera gentileza" - e por isto, com a devida permissão, compartilho aqui o conto com outras pessoas que também não tiveram o prazer de ler o relato desta fantasmagórica despedida do Mirisola das ruas do Rio de Janeiro.

*

Marcelo Mirisola: 
Pro Dia Nascer Feliz


Aqui no centro do Rio não fico sozinho, a cidade me faz companhia. Como se eu fosse uma criança e a solidão me desse as mãos para atravessar ruas, entrar em butecos e encetar pequenas cosmogonias.  Sou um bêbado discreto e só um pouco ruminante. Um vulto triste e complacente que jamais estragaria a festa das almas trôpegas que ainda pensam que estão vivas. Parece uma ninharia, mas é muito se eu for comparar a São Paulo: cidade que nunca me ofereceu nada diferente de expurgo, amigos cinzas, exílio e uma solidão que não precisa de ninguém para existir. São Paulo me cospe.

No Rio, o movimento é exatamente o contrário. A paisagem, de braços dados com a solidão, além de me tragar, também me acompanha – embora meu amigo Miguel do Rosário tenha argumentos geográficos e políticos (agora não me lembro quais...) que provam que o centro do Rio não existe. 

Apesar de todas as evidências forjadas pela Secretaria de Turismo, o “Rio Antigo” não está preso numa fotografia amarelada. Isso é mentira pra decorar buteco de paulista. O Rio não é um lugar que têm promissórias a acertar com o tempo. Nem com o passado, nem com as olimpíadas de 2016. Antiga é a mania de demolir e reformar, de cumprir as obrigações do dia-a-dia, de abrir franquias e fazer “releituras”: antigo é o hábito de registrar o tempo em fotografias. 

O mais grave é não ouvir o lamento das pedras. Um erro. O fato de os séculos terem passado não impede que as pedras do Beco do Barbeiro continuem gritando. São as mais sofridas e indiscretas da cidade. Antigo é não transcender.

Os burocratas da Riotur não deviam ignorar os aflitos que buscam indultos na Igreja do Carmo, vizinha do Beco.  A bocarra aberta da Igreja continua – apesar de o purgatório não mais existir – cumprindo sua função de engolir almas.  Nem sei se é bom negócio. Mas sei que o tempo pisado, no Rio, é bem público e privado, assim como o desamparo e os pecados do mundo, bens que não prescrevem e não tem nome.

Butecos são butecos, conventos não são jaqueiras e igrejas não são espaços culturais da Oi. Têm certas coisas que demandam apenas rumores para que existam e sejam compreendidas: os passos de um homem na Rua do Ouvidor que apressam o ritmo do sujeito que vem à frente, a aflição dos dois a caminho do trabalho um pouco antes de olharem para a mesma mulher do outro lado da calçada. Aparentemente uma cena banal. Mas esse rumor tem o mesmo efeito do silêncio que congela as ruas e os séculos imediatamente depois que os homens apressados dobram à esquerda na direção da Sete de Setembro. Claro que fantasmas existem. Eu os vejo, eles me vêem – vivos e mortos a caminho do eterno pasto.  As almas do Telles juram que estou vivo. O gato preto que desaparece na próxima esquina e o arrepio que sobe pela espinha são lições de indiferença que cumprem séculos e séculos. Eu sei! Na manhã de setembro de 1711 uma espessa neblina baixou sobre a baía de Guanabara – lembram? – e facilitou a invasão de René Duguay-Trouin, o francês filho da puta que sequestrou a cidade e impôs o terror à população. Na mesma manhã de setembro, Vanusa perderia Antonio Marcos para Débora Duarte. A dor permanece nas manhãs de setembro. Em alguns casos, a redundância também. Quem é que precisa de provas?  

Os fantasmas da Rua do Senado espalharam boatos que o tempo não passa. Aconteceu anteontem. Depois de comer um sanduíche de bife a milanesa no Massapê, esquina da Gomes Freire com a Rua da Relação, resolvi seguir até a Lavradio e, de lá, meu plano era simples: pegaria o bagulho na Pça.Tiradentes e me pirulitaria o mais rápido possível em direção à Cinelândia. Nem bem havia dobrado a esquina, um sujeitinho de paletó de linho branco, cabelo engomado, chapéu panamá e sapato bicolor, me pediu fogo.

O malandro foi direto ao ponto:

- Veio de lá, parceiro?

Encruzilhada braba. Eu não estava a fim de pagar de otário justo no coração da Lapa, e respondi:

- Sim, nascido e criado em São Paulo. Mas estou aqui para resgatar meu coração que ficou espanado no Morro do Livramento. E você, malandro?  Saiu de um ensaio da Marie Claire ?

Se eu dissesse que o malandro evaporou estaria cometendo um ectopleonasmo (não resisti ao trocadilho, perdão). Segui na direção da Pça.Tiradentes, onde pegaria o bagulho perto da Estudantina e, no máximo em oito minutos a passos largos, chegaria ao meu destino: uma asinha de anjo no Galeto Liceu. Segundo meus cálculos, antes das 20 horas daria cabo do anjinho na brasa, e ainda me sobraria um tempo para conferir a qualidade do bagulho – ou parte dele.

As distancias no Rio são curtas, mas pesam. Ir da Lapa até a Praça XV significa cumprir uma maratona espiritual.  Agora, tem uma coisa que independe da circunscrição do susto, e que me chama muito a atenção: todos os fantasmas que encontro pelo caminho, todos eles tem sede.

Ontem à noite enchi a cara na Cinelândia.  Joel bate ponto lá.  O Barão, que também não sai do Amarelinho, contava que seu cardiologista o havia proibido de beber às refeições. Para não contrariá-lo, teve uma idéia brilhante: decidiu abolir as refeições. Voilà! O Barão é foda, o rosto de menino atrás da barba branca e os olhinhos que brilham como se fossem um radar em busca de cascas de banana, não me enganam. Eu escolhi não facilitar com a monarquia. O ideal, a tática mais indicada, é pedir outra dose e meter o pau no Getúlio. O mesmo vale pro Joel. Recém-chegado do Sergipe, descolou um emprego na redação do “Dom Casmurro”. Os dois e mais o Brício – que tem mania de bordejar sobre as mesas – armaram o QG no Amarelinho. 

À primeira vista não fui com a cara do Joel. Ele e Brício não se desgrudam. Tive a impressão que eram bookmakers, daqueles que trocam segredos de cavalariça. Me enganei. A Víbora, leia-se Joel Silveira, nos contou que está morando numa pensão na Rua das Marrecas, ali pertinho. Gamou na faxineira, logo “espichou a braguilha” na direção dela e teve sua recompensa. Sei não. Se é verdade ou mentira não me interessa: o melhor é que ele batizou a garota de “Miss-Marrecas”. Cafajeste e boa gente, glutão. Dois glutões, ele e o Barão. Só de ouvir o Barão pedir o famoso “talharim al pomidoro” dá vontade de comer a própria gravata. O Brício não, esse é mais de ficar ciscando. Antes de morrer já cultivava essa mania de bordejar sobre as mesas, um passarinho.

Por que ninguém “comete”  bondades? Sim, Barão, foi isso mesmo o que eu disse. Por que apenas arquitetam-se maldades, bolam-se golpes e crimes são urdidos na calada da noite?

O Barão não se fez de rogado e soltou alguma piada, da qual – sou obrigado a confessar – não me recordo, agora não.

Enchemos literalmente os esqueletos naquela noite, e brindamos à Miss Marrecas e ao Bussunda que acabava de chegar à mesa, meio sem jeito.

No dia seguinte, acordei no largo de São Francisco da Prainha. Ouvi um batuque vindo na direção da Pedra do Sal misturado com o barulho do mar que arrebentava logo ali nas muradas do cais – o problema é que ambos, o mar e o cais, haviam sido removidos de lá há pelo menos cem anos. A gente não deve contrariar as ressacas, venham de onde vier.  Não sei como, mas consegui ir do largo da Prainha até a Pedra do Sal, cheguei são e salvo na pensão da Tia Ciata que me recebeu de braços abertos. Vejam só; da Prainha até a pensão é perto, mas é longe. Sobretudo pruma alma vendida, trôpega e premida como esta que vos escreve e que era mais carne do que qualquer outra coisa depois do porre da noite anterior – e foi assim, com a alma sobre as costas, que subi os degraus escorregadios da Pedra do Sal e cheguei na pensão supracitada.

Os batuques que ouvi no largo da Prainha vinham de uma roda de Jongo, da qual Tia Ciata era madrinha. Podia estar louco, mas não surdo. “Os negros – ela me disse: – estão faceiros, mas nem eles e nem Deus não sabem, ainda não, que são brasileiros”.

Ela estava certa. Naquele 1889, o Cristo ainda não havia fixado residência no alto do Corcovado. Pelo sim, pelo não, resolvi pedir mais uma dose pra garantir guarida. A noite ia ser longa, e prometia.

Todavia o mar era o mesmo, eu lembro, o mar que há cem anos, aterrado e removido de si, rebentava das muradas do largo da Prainha, era o mesmo que ia e vinha e investia suas tempestades contra os meus miolos  encharcados de álcool e assombrações. Também me recordo – vagamente – das coordenadas de Tia Ciata, ela me disse que uma louca estaria à minha espera no Morro do Livramento, e que eu deveria entregar o bagulho na quinta-feira sem falta.

As promessas da noite foram cumpridas. Acordei em Ipanema, mais ou menos entre fevereiro de 1985 e maio de 2011. O dia havia nascido feliz e eu tinha pouco tempo para aproveitá-lo – mas antes eu teria que me livrar daquele maldito bagulho de uma vez por todas.




2 comentários:

Anônimo disse...

Essa versao,Nilo, tá melhor que a da Folha. O revisor abelhudo meteu umas virgulas em lugares errados. Ainda bem que nao conseguiu estragar o texto. Abraço. E obrigado pela divulgaçao,MM

Nilo Oliveira disse...

Eu que agradeço. E até combina com a postagem que vem seguir. Ficou muito bem assombrado este brógue... Abraço.