sexta-feira, 17 de junho de 2011


J. L. Borges:
Fragmentos de um Evangelho Apócrifo

3 Desventurado o pobre de espírito, porque sob a terra será o que agora é na terra.

4 Desventurado o que chora, pois já tem o hábito miserável do pranto.
5 Afortunados os que sabem que o sofrimento não é uma coroa de glória.
6 Não basta ser o último para ser alguma vez o primeiro.
7 Feliz o que não insiste em ter razão, pois ninguém a tem ou todos a têm.
8 Feliz o que perdoa os outros e o que perdoa a si mesmo.
9 Bem-aventurados os mansos, porque não condescendem à discórdia.
10 Bem-aventurados os que têm fome de justiça, porque sabem que a nossa sorte, adversa ou piedosa, é obra do acaso, que é inescrutável.
11 Bem-aventurados os misericordiosos, porque sua felicidade está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prêmio.
12 Bem-aventurados os de coração puro, porque vêem Deus.
13 Bem-aventurados os que padecem perseguição por causa da justiça, porque lhes importa mais a justiça do que seu destino humano.
14 Ninguém é o sal da terra; ninguém, em algum momento da sua vida, não o é.
15 Que a luz de uma lâmpada se acenda, embora nenhum homem a veja. Deus a verá.
16 Não há mandamento que não possa ser infringido, e também os que digo e os que os profetas disseram.
17 Aquele que matar pela causa da justiça, ou pela causa que ele crê justa, não tem culpa.
18 Os atos dos homens não merecem nem o fogo nem os céus.
19 Não odeies o teu inimigo, porque, se o fazes, és de algum modo seu escravo. Teu ódio nunca será melhor que a tua paz.
20 Se te ofender tua mão direita, perdoa-a; és teu corpo e és tua alma, e é árduo, senão impossível, fixar a fronteira que os divide…
24 Não exageres o culto da verdade; não há homem que no fim de um dia não tenha mentido com razão muitas vezes.
25 Não jures, porque todo juramento é uma ênfase.
26 Resiste ao mal, mas sem espanto e sem ira. A quem te ferir na face direita, podes oferecer a outra, sempre que não te mova o temor.
27 Não fale de vinganças nem de perdões; o esquecimento é a única vingança e o único perdão.
28 Fazer o bem ao teu inimigo pode ser obra de justiça e não é árduo; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.
29 Fazer o bem a teu inimigo é o melhor modo de satisfazer a tua vaidade.
30 Não acumules ouro na terra, porque o ouro é pai do ócio, e este, da tristeza e do tédio.
31 Pensa que os outros são justos ou o serão, e, se não é assim, não é teu o erro.
32 Deus é mais generoso que os homens e os medirá com outra medida.
33 Dá o que é santo aos cães, joga tuas pérolas aos porcos; o importante é doar.
34 Procura pelo prazer de procurar, não pelo de encontrar…
39 A porta é que escolhe, não o homem.
40 Não julgues a árvore por seus frutos, nem o homem por suas obras; podem ser piores ou melhores.
41 Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso dever é edificar como se fosse pedra a areia…
47 Feliz o pobre sem amargura ou o rico sem soberba.
48 Felizes os valentes, os que aceitam com ânimo semelhante a derrota ou as palmas.
49 Felizes os que guardam na memória palavras de Virgílio ou de Cristo, pois estas darão luz aos seus dias.
50 Felizes os amados e os que amam e os que podem prescindir do amor.
51 Felizes os felizes.

(Do livro "Elogio da Sombra", Obras Completas, ed. Globo)



2 comentários:

Anônimo disse...

Esse blogger some com algumas postagens de vez em quando...

Nilo Oliveira disse...

as vezes ele só substitui.