terça-feira, 16 de agosto de 2011

Graciliano por Liberati

Graciliano Ramos: 
Infância (trecho)

Essas moças tinham o vezo de afirmar o contrário do que desejavam. Notei a singularidade quando principiaram a elogiar o meu paletó cor de macaco. Examinavam-no sérias, achavam o pano e os aviamentos de qualidade superior, o feitio admirável. Envaideci-me: nunca havia reparado em tais vantagens. Mas os gabos se prolongaram, trouxeram-me desconfiança. Percebi afinal que elas zombavam, e não me susceptibilizei. Longe disso: julguei curiosa aquela maneira de falar pelo avesso, diferente das grosserias a que me habituara. Em geral me diziam com franqueza que a roupa não me assentava no corpo, sobrava nos sovacos. Os defeitos eram evidenciados, e eu considerava estupidez virem indicá-los. Dissimulavam-se agora num jogo de palavras que encerrava malícia e bondade. Essa mistura de sentimentos incompatíveis assombrava-me - e pela primeira vez ri de mim mesmo. A doçura picante não me reformava, é claro, mas exibia-me como eu poderia ter sido se a natureza e o alfaiate me houvessem dado os recursos indispensáveis. Satisfazia-me a idéia de que a minha figura não provocava inevitavelmente irritação ou desdém, e as novas amigas surgiram-me compreensivas e caridosas. Guardei a lição, conservei longos anos esse paletó. Conformado, avaliei o forro, as dobras e os pospontos das minhas ações cor de macaco. Paciência, tinham de ser assim. Ainda hoje, se fingem tolerar-me um romance, observo-lhe cuidadosamente as mangas, as costuras, e vejo-o como ele é realmente: chinfrim e cor de macaco. 

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