quinta-feira, 19 de novembro de 2009


O Caminho e o Contrário



Por ocasião do lançamento de suas obras completas, escreveu Borges no prólogo do seu livro de estréia, “Fervor de Buenos Aires”, publicado quando ele tinha 22 anos: “Naquele tempo, procurava os entardeceres, os arrabaldes e a desdita; agora, as manhãs, o centro e a serenidade”.


O poema abaixo, do português José Régio, faz parte da minha adolescência. Quando ainda acreditava que a falta de medida e a loucura, por si sós, eram condições indissociáveis ao talento ou a qualquer tipo de pretensão literária ou artística. Em nome disto – intoxicado de música e literatura – cometi todas as cagadas necessárias pra poder olhar pra trás sem grandes nostalgias ou arrependimentos (um ou dois, na verdade... E sempre por excesso).


Hoje a transgressão virou regra. Sair pelas madrugadas em alta velocidade quebrando bares, enchendo a cara e cheirando pó virou um ritual que todo adolescente – pra ser considerado “normal” – é quase que obrigado a cumprir. A classe média descobriu os clubes de swing, o ex-Primeiro Ministro britânico toca guitarra e o presidente da França é casado com uma groupie. A única herança que restou quase intacta da chamada “mentalidade burguesa” – a qual, inspirados por nossos ídolos, combatíamos com unhas e dentes (apesar da maioria de nós ter nascido dentro dela) – é a tal da “mentalidade empresarial”.


Não é pouca coisa, reconheço. O problema é que o inimigo tomou quase todas as armas com as quais pelo menos três gerações aprenderam a lutar. E como se não bastasse, as revende a preços exorbitantes, e numa embalagem "bem transada" (ainda se fala isso?), aos novos iludidos, que ainda insistem em posar de transgressores, outsiders, “malditos” & afins.


Conheço bem o jogo. Eu e ele nascemos quase juntos, na mesma época. Também, no meu tempo, cheguei a comprar muito gato por lebre.


De modo que o poema, em essência, continua atual. O que está cada vez mais difícil de saber é pra que lado fica o tal caminho contrário. Pra mim já é tarde: não tenho mais saco de procurá-lo. Me restaria, portanto, fazer coro com Borges.


O diabo é que não consigo. De jeito nenhum.



José Régio: Cântico Negro


”Vem por aqui” - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

6 comentários:

Anônimo disse...

Oi, Nilo,
A coisa mais bonita do mundo é ver o Paulo Gracindo declamando essa poesia do José Régio.
Abraço,
MM

Unknown disse...

Nilo,
Texto transado. Quanto à poesia, parece a história da minha vida.
abraços

Nilo Oliveira disse...

Pois é. A gíria é o carbono 14 de quem quer se fazer moderno. Como diz um amigo meu, "os velhinho se entrega..." Abraço.

Nilo Oliveira disse...

Mirisola: tu mataste a charada. Tentei me lembrar como tinha descoberto o poema e não consegui. Claro, o Paulo Gracindo... parece que foi no Fantástico, não é? Abraço.

Anônimo disse...

Não sei se foi no Fantástico,Nilo. Sei que ele usava smoking e falava pruma platéia de fumantes. Talvez teatro Rival. A Dina Sfat aplaudia. Outros tempos, régios.
Abraço,
MM

Nilo Oliveira disse...

Então devo ter me confundido. Não lembro de ter visto platéia... Faz tempo pra caralho isso.