quarta-feira, 6 de julho de 2011


Duas Lições de João Cabral

I

"Qualquer coisa espontânea que eu faço, desconfio dela. Parece ser eco de alguém. Por exemplo, se o Espírito Santo descer aqui nesse instante e me assoprar no ouvido o poema mais genial do mundo, ainda que não seja eco de nenhum poema que eu tenha lido, eu rasgo. Não acredito. Preciso trabalhar em cima, eliminar o que sei que ainda não sou eu, compreende? O artifício não é fuga, ajuda a gente a penetrar em si mesmo.

(...)

Criação é composição. É arrumação de coisas exteriores, junção de elementos para criar um objeto. Antigamente, quando o cara estava com apoplexia, vinha um farmacêutico e o sangrava, porque ele tinha excesso de sangue. Agora, existe outra fobia de espíritos para quem a criação é o resultado de uma carência de ser. O sujeito que não tem uma perna e que para ficar de pé fabrica uma muleta, está entendendo? Ele não está criando por excesso de ser, e sim por carência de ser. Ele precisa se completar no objeto que está tentando construir".

(Entrevista para Edla van Steen, do livro "Viver e Escrever", vol. 2)


II


(...)

Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra
o da figura de lenha
lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,

o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.

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