O que virá a seguir será uma traição: vergonha na cara, porém, nunca foi meu forte. Até me esforço pra seguir na linha - se este mundo não fosse um mapa de descaminhos, tentações, histórias impossíveis de mais tarde contar pros nossos netos - tantas noites com tantos bares abertos e tantas mulheres do próximo e de ninguém com as rebembelas enfrutecidas e as consciências previamente inocentadas pela desculpa do porre.
Mas o que virá a seguir não tem a ver com sacanagem (pelo menos não no sentido estrito do termo). É que recolhi uns versos dos livros "Do Desejo", "Da Noite" e "Amavisse" - todos da senhora H. - e me deu vontade de publicá-los bastardos, descolados do resto do poema.
Que a senhora H. me perdoe, onde quer que ela esteja, mas ela deve saber que qualquer homenagem é, em si, também uma traição - e não tenho culpa se em meio ao abrigo meticulosamente construído do poema um ou outro verso se destaque e aguarde, de bico aberto, pra que a gente o alimente com pedaços mais generosos do nosso espanto.
(Pra quem estranhou o estilo meio rococó desta introdução, aqui vai um aforismo do "Manual de Sobrevivência Noturna" - livro de minha autoria que, pelo pouco de pudor que ainda me resta, jamais foi escrito: "Quanto mais românticas e derramadas forem as palavras, menor será a necessidade de cuspe depois").
Hilda Hilst
(versos escolhidos à traição)
DO DESEJO
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.
*
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
*
E que escura me faço se abocanhas em mim
Palavras e resíduos.
*
Por que não possoPontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?
*
E te repito: por que haverias De querer minha alma na tua cama?
*
Para pensar o Outro, eu deliro ou versejo.Pensá-LO é gozo. Então não sabes? INCORPÓREO É O DESEJO.
Vi éguas da noite entre os escombros
Da paisagem que fui. Vi sombras, elfos e ciladas.
Laços de pedra e palha entre as alfombras
E vasto, um poço engolindo meu nome e meu retrato.
*
Vem dos vales a voz. Do poço.Dos penhascos.
Mas ressoa cruel e abjeta
Se me proponho ouvir. Vem do nada.
Dos vínculos desfeitos. Vem dos ressentimentos.
E sibilante e lisa
Se faz paixão, serpente, e nos habita.
*
O que é IssoQue recobre o osso
Este novelo liso e convulso
Esta desordem de prazer e atrito
Este caos de dor sobre o pastoso.
Ossos. Carne. Dois Issos sem nome.
*
Costuro o infinito sobre o peitoComo aqueles que amam.
*
Que te demoresCobrindo-me de sumos e de tintas
Na minha noite de fomes.
Nunca houve mulher como Hilda |
AMAVISSE
Porco-poeta que me sei, na cegueira, no charco
À espera da Tua Fome, permita-me a pergunta Senhor de porcos e de homens:
Ouviste acaso, ou te foi familiar
Um verbo que nos baixos daqui muito se ouve
O verbo amar?
Porque na cegueira, no charco
Na trama dos vocábulos
Na decantada lâmina enterrada
Na minha axila de pelos e carne
Na esteira de palha que me envolve a alma
Do verbo apenas entrevi o contorno breve:
É coisa de morrer de matar mas tem som de sorriso,
Sangra, estilhaça, devora, e por isso
De entender-lhe o cerne não me foi dada a hora.
É verbo? Ou sobrenome de um deus prenhe de humor
Na péripla aventura da conquista?
(Todos os versos foram transcritos do livro cuja capa ilustra este post. Compõe o volume - organizado e introduzido por Alcir Pécora - as obras "Do Desejo", "Da Noite", "Amavisse", "Via Espessa", "Via Vazia", "Alcoólicas" e "Sobre a Tua Grande Face".)
6 comentários:
É bom pra relembrar os incautos que o tempo foi feito pra ser melhor gasto. Essa frase embaixo da foto é tua?
O trocadilho (com o perdão da má palavra) é meu, Mariana. Mas não deixa de ser uma verdade, não é?
Adoraria ter fumado um cigarro com ela.
Pelo menos até onde sei, na poesia, é mesmo Nilo! Profundamente fêmea. Tô curtindo muito seu blog.
Diz que ela recebia muito bem as pessoas que iam visitá-la na Casa do Sol... Beijo Paula.
És sempre bem vinda, Mariana. Beijo.
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