Hoje o inverno chegou pra valer. Uma chuva rala, fininha, como se o frio não se contentasse com a pele e quisesse gelar também o que está por baixo dela. Principalmente a memória. Que visita outros dias de inverno, todos eles encolhidos nesse pequeno sanatório de coisas que não estão aqui, mas ao mesmo tempo estão. Com estranha clareza, dá pra escutar a risada dos internos, seu bater de dentes, as palavras sem nexo, caminhar entre os diversos tamanhos de seus corpos encolhidos e de cabeças trocadas. O domingo inteiro debaixo das cobertas. Um gordinho simpático na tv fala do livro que escreveu sobre o Fernado Pessoa. Uma biografia. Vejo um desses rostos antigos se erguer entre os outros e declamar, de modo solene: "O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, Que chega a fingir que é dor, A dor que deveras sente" - e logo um moleque magrinho, também vagamente parecido comigo, expia sobre seu ombro e comenta, cheio de sacanagem na cara: "Genial!... Um troço que vale tanto pro poeta quanto pra atriz pornô!" Vou até a estante, pego um livro e abro numa página qualquer. E então o poema é tudo o que há, pontuado pelo barulho da chuva, que subitamente enfurece e castiga a vidraça.
"Há metafísica bastante em não pensar em nada. O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso. Que idéia tenho eu das coisas? Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos? Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma E sobre a criação do mundo? Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos E não pensar. É correr as cortinas Da minha janela (mas ela não tem cortinas). O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério! O único mistério é haver quem pense no mistério. Quem está ao sol e fecha os olhos, Começa a não saber o que é o Sol E a pensar muitas coisas cheias de calor. Mas abre os olhos e vê o Sol, E já não pode pensar em nada, Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos De todos os filósofos e de todos os poetas. A luz do Sol não sabe o que faz E por isso não erra e é comum e boa. Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? A de serem verdes e copadas e de terem ramos E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, A nós, que não sabemos dar por elas. Mas que melhor metafísica que a delas, Que é a de não saber para que vivem Nem saber que o não sabem? 'Constituição íntima das coisas'... 'Sentido íntimo do Universo'... Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada. É incrível que se possa pensar em coisas dessas. É como pensar em razões e fins Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão. Pensar no sentido íntimo das coisas É acrescentado, como pensar na saúde Ou levar um copo à água das fontes. O único sentido íntimo dos coisas É elas não terem sentido íntimo nenhum. Não acredito em Deus porque nunca o vi. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, Sem dúvida que viria falar comigo E entraria pela minha porta dentro Dizendo-me: Aqui estou! (Isto é talvez ridículo aos ouvidos De quem, por não saber o que é olhar para as coisas, Não compreende quem fala delas Com o modo de falar que reparar para elas ensina.) Mas se Deus é as flores e as árvores E os montes e sol e o luar, Então acredito nele, Então acredito nele a toda a hora, E a minha vida é toda uma oração e uma missa, E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. Mas se Deus é as árvores e as flores E os montes e o luar e o sol, Para que lhe chamo eu Deus? Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar; Porque, se ele se fez, para eu o ver, Sol e luar e flores e árvores e montes, Se ele me aparece como sendo árvores e montes E luar e sol e flores, É que ele quer que eu o conheça Como árvores e montes e flores e luar e sol. E por isso eu obedeço-lhe (Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?), Obedeço-lhe a viver, espontaneamente, Como quem abre os olhos e vê. E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes, E amo-o sem pensar nele, E penso-o vendo e ouvindo, E ando com ele a toda a hora." (Alberto Caeiro: "O Guardador da Rebanhos", Canto V) |
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