sábado, 28 de maio de 2011

O Pé Que Não É


Já disse aqui que a pior forma de burrice é a falta de humor. Não sou do tipo otimista. Nem acredito na força do pensamento positivo, no envio de bons fluidos e coisas do gênero. O humor, pra mim, é uma forma de resistência. Na falta de Deus, do Paulo Coelho ou da Zíbia Gasparetto é o único recurso que tenho pra amenizar o impacto das porradas que a vida parece ter sempre engatilhadas em meia dúzia dos seus punhos (tem vários punhos a vida... Os hindus estão certos quando representam a deusa da desgraça com dez braços.)
Meu avô era, em todos os sentidos, um grande sujeito. Tinha uns cento e vinte quilos de gordura compacta. Quando morreu foi uma dor filha da puta pra todos que o conheceram. O que não impediu meu pai de escolher a gaveta mais alta do cemitério São Miguel e Almas pra colocar o caixão. Tiveram que ser convocados uns oito amigos e coveiros. Depois ficamos rindo, imaginando como o velho iria se divertir vendo os caras ali, "forcejando mais que entupido", como ele mesmo dizia.
Não perdia a oportunidade pra uma boa gozação, o véio Nilo (sim, essa é a origem do meu nome). Trovador, açougueiro, ex-contrabandista de gado – passava as tardes num armazém perto da sua casa, cujos frequentadores pareciam ter saído de um filme do Mario Monicelli.
Um deles se chamava Zé e tinha uma perna de pau. Ninguém tocava no assunto. Quando bebia, o Zé ficava valente: um tipo sempre mal humorado, que ameaçava dar tiro e sair no braço por qualquer motivo. Era também famoso por seu pão-durismo.
Na primeira discussão que teve com meu avô, o velho encerrou a conversa dizendo pra ele tomar tento, senão iria arranjar um casal de cupins e pôr na perna dele. O Zé sumiu por uns tempos. E, quando voltou, os dois se tornaram grandes amigos – apesar dele ter ganhado o apelido definitivo de "Zé Perneta".
Tornou-se mesmo frequente o ameaçarem com cupins e pica-paus. Não chegava a rir. Mas também já não ia embora furioso, como costumava acontecer.
Certa ocasião, o Sarará – um crioulo mirrado e gozador – achou de cutucá-lo, numa discussão sobre futebol (o Sarará era o único colorado da gangue):
– Olha, Zé, é melhor ficar na tua: senão eu dou uma rasteira neste teu pé que não é...
Nem tinha terminado de falar e o Zé já estava com a própria perna na mão, com sapato e tudo, ameaçando quebrar a cabeça do Sarará.
Quando o colorado fugiu às gargalhadas, o Zé, colocando a perna de volta, também começou a rir – e, pra espanto geral, pagou uma rodada de canha pra todo mundo.



Sempre que ouço falar em bulling e pataquadas do tipo, me lembro dessa história.
Pra quem não teve a sorte de, na infância, ter presenciado ou escutado histórias do tipo, e insiste em cultivar com gravidade a dor irremediável do seu pé que não é, recomendo assistir urgentemente os filmes "Amici Miei" I e II, do já citado Monicelli (no Brasil, "Meus Caros Amigos" e "O Quinteto Irreverente") – ou escutar aquele famoso samba do Cartola (... Pois chorando/ Senti a mocidade perdida).
Concordo parcialmente com o Shakespeare quando diz que "só ri-se da cicatriz quem nunca foi ferido". É vero. Em feridas mal cicatrizadas a gente tem que mexer com cuidado. Alguns fatos nos obrigam mesmo a ficar encolhidos num canto, encher a cara e chorar um pouco pra ser melhor digeridos. Mas uma coisa é certa: quanto mais o sujeito se leva a sério, pior o seu processo de cicatrização.
Fora da capela, com seu copo de canha na mão, o Zé Perneta era o amigo que mais chorava no velório do véio Nilo.

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