segunda-feira, 30 de maio de 2011


Assim termina o livro "Cartas de Aniversáro", de Ted Hughes:

Vermelho

O vermelho era sua cor.
Se não o vermelho, o branco. Mas era no vermelho
Que você se envolvia.
Vermelho-sangue. Seria mesmo sangue?
Ou ocre, para aquecer os mortos?
Hematita para imortalizar
Os ossos da família, legado precioso.


Quando por fim se fez a sua vontade
Ficou vermelho o nosso quarto. Um tribunal.
Escrínio fechado para jóias. Tapete de sangue
Com padrão de formas escuras, coaguladas.
As cortinas - veludo vermelho-rubi.
Torrentes de sangue puro a cair do teto.
As almofadas também. O mesmo tom
De carmesim em carne viva no poial da janela.
Uma célula a pulsar. Altar asteca - templo.


Só as estantes escapavam para o branco.


E pela janela se avistavam 
Papoulas finas, frágeis, franzinas
Como pele sobre sangue,
Sálvias, das quais seu pai tirou seu nome,
Como sangue jorrando de um talho,
E rosas, últimos coágulos do coração,
Catastróficas, arteriais, condenadas.


A sua saia rodada de veludo, um lanho de sangue,
Tom generoso de borgonha.
Os seus lábios de um carmesim fundo, fendido.
Você exultava com o vermelho.
Para mim era carne viva - como as bordas 
Duras feito gaze de uma ferida a cicatrizar.
Nele eu sentia a veia aberta, o brilho encrostado.


Você pintava tudo de branco, e depois
Salpicava de rosas, para derrotá-lo,
Se debruçava sobre o branco, gotejando rosas,
Chorando rosas, e mais rosas,
E por vezes, entre elas, um pequeno azulão.


O azul era melhor para você. Azul de asas.
Sedas azuis de San Francisco, cor de martim-pescador,
Envolviam sua gravidez
Em carícias de crisol.
Azul era seu espírito bom - não um espectro sinistro,
E sim um guardião, elétrico, solícito.


No abismo de vermelho
Você se ocultava do branco de osso, de hospital.


Mas era azul a jóia que você perdeu.


*


Por todo o livro, sua primeira mulher, Sylvia, desliza como um vulto translúcido e incandescente, que atravessa uma sala de cabeça erguida, rumo a um fim que todo mundo já sabe. Quando a segunda mulher de Hughes também se matou, e de forma idêntica a esse espectro que decerto a assombrava, pra muitos foi uma confirmação: Ted era mesmo um monstro. Quem, entretanto, lê essas "cartas" à espera uma confissão - depois de mais de quarenta anos de estóico silêncio - cai do cavalo. O que se vê é um homem difícil e consciente do problema que representava a quem se aproximasse dele, casado com uma mulher também, ao mesmo tempo, difícil e delicada, que arrastava consigo um ossuário pesado (principalmente os ossos do pai) e  todos os empedernidos valores que sustentam a jovem e contundente mitologia da sua terra (os EUA), os quais Hughes - um camponês do interior da Inglaterra, que se criara em meio aos bombardeios da segunda guerra mundial - ora não entendia, ora simplesmente desprezava. No fim das contas se tem a impressão de que, nesse embate, os dois acabaram trincados e partidos, mas apenas um - pro mal dos seus pecados - ficou de pé. 


Agora que ambos estão mortos, sobra o que deixaram escrito. E, na minha opinião, é o que realmente importa. 

Na sequência, um dos últimos poemas de Sylvia Plath, que - acho eu - encontra ressonâncias com o poema que abre esta postagem. E não só por uma viagem da minha cabeça: uma das marcas do livro é um diálogo constante entre Hughes e os poemas de Plath.


*

Sylvia Plath: Edge 


A mulher ficou perfeita.
Seu corpo


Morto sorri o sorriso da realização,
A ilusão de uma necessidade grega


Corre nos papiros de sua toga,
Seus pés


Descalços parecem dizer:
Fomos tão longe, acabou.


Cada criança morta encolhida, uma serpente branca,
Uma em cada pequena


Bilha de leite, agora vazias.
Ela as recolheu


Novamente a seu corpo como pétalas
De uma rosa fechada quando o jardim


Endurece e os cheiros sangram
Das gargantas profundas e doces das flores noturnas.


A lua não tem por que ficar triste,
Vendo tudo com seu capuz de osso.


Ela esta acostumada a esse tipo de coisa.
Suas rachaduras negras crepitam e arrastam.




2 comentários:

Unknown disse...

Nunca entenderei, Nilo: foi o mais forte quem ficou em pé?
Abraço.

Nilo Oliveira disse...

Não sei se a coisa pode ser compreendida em termos de força ou fraqueza. Não sei nem mesmo se pode ser compreendida. Mas ficaram os poemas. E isso, como eu disse, é o que importa. Grande abraço!