quarta-feira, 25 de maio de 2011


Monk's Blues

(...)
A mesa ao fundo. Luz néon. O litrinho de cerveja uruguaia (aqui me permito uma licença poética). Um lugar pequeno, de teto baixo. Nos telões, em preto-e-branco, clássicos do jazz: caras negras, sorridentes, curtidas pela cachaça. Tiozinhos de terno, com óculos de tartaruga. A era pré-performance: quando os guitarristas não dobravam o corpo, nem faziam careta pra tocar. Todos pareciam estar pouco se lixando pra câmeras e holofotes. Uma época em que o recreio era escasso – e as mãos dos músicos, educadas pelo cabo da enxada.
Durante um solo de sax, Thelonious Monk se levanta do piano e começa a dançar. Todo torto, um braço dobrado frente ao peito e o outro pendurado, como se estivesse com o amortecedor vencido. Depois volta ao banquinho e, como um possesso, agride o teclado, fazendo lembrar a todos que o piano, com toda a sua chinfra, não passa de um primo mais afrescalhado do tambor.
A cerveja desce rebolando pela garganta. E começa a se arretar com o conhaque na ampla cama redonda do meu bucho. A melodia estanca e a câmera foca o baterista. Dois braços. Um bumbo. Dois pratos, dois tambores – e duas mil e quinhentas baquetas.
Numa manhã inverno, há uns trinta anos atrás, eu, meu irmão, meu avô e meu pai, quebrando a geada com taco das botas: o campo ancestral e monótono. A entrevada ondulação das coxilhas. Lembro que estava muito orgulhoso com minhas botas novas, forradas de pele de ovelha. Um pouco adiante, um grupo de peões, com um boi pelo cabresto.
Ao nos aproximarmos, o capataz, numa reverência, ofereceu ao meu avô uma faca. O velho agradeceu com um breve aceno de cabeça. E, numa extensão do cumprimento – fez com que a lâmina entrasse e saísse com doçura do peito do animal. Virei o rosto pro irmão, dois anos mais novo. E vi, desapontado, que ele olhava firme o bicho que, em câmera lenta, se ajoelhava sobre o próprio sangue, os olhos revirados, como naquelas gravuras de Joana D´arc, momentos antes do martírio. Com dois gestos vigorosos, o velho limpou a lâmina no pasto e a devolveu ao capataz. Munidos de machadinhas e facas afiadas, os peões atacaram o boi e o carnearam ali mesmo, sobre o couro.
Horas depois estava saboreando – assado pelo avô, antigo açougueiro e contrabandista de gado – o melhor churrasco que já comi na vida.
O baterista do Thelonious Monk me fez recordar esta cena. O misto de violência e doçura com que tratava os tambores. Se filmado do peito pra cima, parecia não ser ele o responsável por toda aquela quizomba.
(...)

Escrevi isto em julho de 2009. É parte da segunda postagem deste blogue, e se chama "O Jazz, o Guarda-chuva e o Martírio do Boi". Hoje achei no YouTube um dos vídeos que a inspiraram. 
Taí.
Thelonious Monks - Blue Monk

2 comentários:

Anônimo disse...

Saudades de dar umas porradas na minha Olivettinha.
Era meu piano quando não tinha internet e essas merdas todas.
Abraço,
MM

Nilo Oliveira disse...

Mirisola's blues.